Mais de 6.000 crianças e adolescentes morreram de forma violenta no país em 2020
São 12.034 brasileiros que não chegaram à fase adulta por causa da violência
Ao menos 6.122 crianças e adolescentes foram mortos de forma violenta e intencional no Brasil em 2020, uma alta de 3,6% em relação aos 5.912 casos registrados no ano anterior.
São 12.034 brasileiros que não chegaram à fase adulta por causa da violência, o que representa 17 casos oficiais por dia ao longo dos anos de 2019 e 2020.
Os números foram divulgados nesta quinta-feira (15) pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em seu 15º anuário, um estudo que disseca a violência no país.
A entidade diz que está compilando dados de violência contra crianças e adolescentes de anos anteriores para estruturar uma série histórica.
Os casos registrados no anuário são de homicídio doloso (quando há intenção de matar), feminicídio, lesão corporal seguida de morte, latrocínio (roubo com morte) e assassinatos decorrentes de intervenção policial.
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As vítimas, no geral, têm um perfil: são meninos e negros. O crime que mais matou quem tinha até 19 anos em 2020 foi o homicídio doloso (82,4% dos casos). Os estados com as piores taxas por 100 mil habitantes de mortes violentas contra essa parcela da população são Ceará (27,2), Rio Grande do Norte (20,9), Sergipe (20,6) e Pernambuco (20,3).
O levantamento chama a atenção para a influência da pandemia de Covid-19 como um agravante da violência letal contra os brasileiros menores de idade.
As vítimas perderam nesse período o principal canal de escuta: a escola. Forçadas a ficarem em casa, também tiveram que conviver mais tempo com pais e cuidadores que, em muitos casos, são os responsáveis pelas agressões.
De outro lado, os organismos de proteção à infância e as próprias polícias também perderam força de atuação nas regiões mais vulneráveis do país. No caso da Polícia Civil, as baixas de pessoal e a suspensão dos trabalhos das delegacias comprometeram a qualidade dos registros das ocorrências e as investigações dos crimes.
A pesquisadora Sofia Reinach, a responsável pelo estudo, fez um recorte por faixa etária. Ela tabelou os casos registrados nos boletins de ocorrência das polícias estaduais e no sistema DataSus, que notifica as agressões que resultaram em mortes cadastradas pelas unidades de saúde.
A pesquisadora descobriu que as crianças são vítimas potenciais de violência doméstica. Já os adolescentes são alvos da violência urbana.
"As crianças foram mortas mais em casa, por uma lesão corporal grave com predomínio do uso de faca, com os autores dos crimes identificados como pais ou cuidadores", diz a pesquisadora.
Ao menos 480 vítimas tinham até 14 anos. Entre 0 e 4 anos, foram localizadas 170 crianças mortas violentamente dessa forma. O feminicídio também apareceu em aproximadamente 5% dos registros entre as meninas com até nove anos de idade.
Um crime recente registrado em março deste ano jogou luz sobre a gravidade das agressões domésticas contra crianças. O menino Henry Borel, 4, do Rio de Janeiro, foi assassinado em casa após sofrer 23 lesões.
A perícia no corpo do garoto localizou escoriações e hematomas, infiltrações hemorrágicas em três regiões da cabeça, laceração no fígado e contusões no rim e no pulmão à direita, entre outros. As investigações mostraram que Henry já havia sido agredido em ocasiões anteriores.
O vereador cassado Dr. Jairinho e a namorada dele, Monique Medeiros, 32, mãe de Henry, foram presos sob a suspeita de homicídio duplamente qualificado -por emprego de tortura e impossibilidade de defesa da vítima.
"É um tipo de crime que se espalha pelo país de uma forma silenciosa sem gerar uma indignação. Tem criança sendo espancada e morta dentro de casa", afirma Reinach.
Mesmo que a violência não sendo diretamente à criança, ela pode ser facilmente afetada e vir a ser assassinada se estiver em lares cujas mães são agredidas pelos companheiros, conta a pesquisadora.
Nos grupos etários seguintes, a pesquisa mostrou que os homicídios dolosos passam a ter menor participação na distribuição e as mortes decorrentes de intervenção policial têm crescimento desproporcional em relação aos outros tipos de crime.
As mortes por intervenção policial representam 6% e 15% dos casos entre as vítimas de 10 a 14 anos e 15 a 19 anos, respectivamente. "A desigualdade é enorme nessas faixas etárias. Há predominância de meninos negros atingidos por armas de fogo nas vias públicas em algum tipo de intervenção feita pela polícia", diz a pesquisadora.
"Por isso, é fundamental que, ao discutir violência letal de crianças e adolescentes, tratemos de dois fenômenos diferentes conjugados", aponta o relatório.
O que ocorre no país, segundo a pesquisa, é uma antecipação na curva etária de vítimas de mortes violentas na comparação com o que se observa em outras localidades, como nos países europeus -onde a faixa etária mais vulnerável está entre 30 e 44 anos, por exemplo.
"Existe um contexto pandêmico que tem exigido políticas públicas mais abrangentes que olhem para o problemas de forma diferenciada", diz Reinach. "É preciso ampliar os canais de escuta para amparar as crianças antes de uma tragédia".
"Estamos falando do ápice da violência que resulta em morte. Mas quantas crianças estão sendo agredidas e empurradas para um cemitério de forma silenciosa?"
Ágatha Felix
Vítima de um dos casos mais conhecidos de violência policial, Ágatha Felix, de 8 anos, foi morta por um tiro de fuzil enquanto viajava em um transporte coletivo com seus parentes, no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. A bala atingiu suas costas e a menina não resistiu. A morte dela ilustra a violência a qual as crianças, principalmente negras, são submetidas desde cedo, chegando, em alguns casos, a não atingir a vida adulta.