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Pandemia

Mais vulneráveis à Covid-19, doentes crônicos enfrentam barreiras para boa assistência

Existe uma grande lacuna entre o que as diretrizes brasileiras preconizam para o cuidado das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT)

Coronavírus Sars-CoV-2Coronavírus Sars-CoV-2 - Foto: Pixabay

Existe uma grande lacuna entre o que as diretrizes brasileiras preconizam para o cuidado das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), como as cardiovasculares e o câncer, e o que de fato está sendo entregue na ponta dos serviços públicos de saúde.

Do acesso e cadastramento na atenção primária à saúde, passando pela falta de equipes multidisciplinares e dificuldade nas consultas especializadas até a própria adesão dos doentes ao tratamento, os desafios para atender esses pacientes, mais vulneráveis à Covid-19, são inúmeros.


O diagnóstico é de um novo relatório do Ieps (Instituto de Estudos para Políticas Públicas) e a Umane, associação civil de apoio a projetos sociais voltados à prevenção de doenças e promoção da saúde, que envolveu revisão de estudos e entrevistas com gestores públicos, profissionais da saúde e usuários do SUS.
Lançado nesta quarta (28), o documento faz um escrutínio dos principais gargalos que envolvem a linha de cuidado das doenças crônicas, a maior causa de mortes no país.

"Foi a população que mais adoeceu e que a gente mais perdeu durante a pandemia. A gestão pública precisa olhar com mais cuidado para essa população e acolhê-la", disse Marco Aurélio Georg, coordenador de integração assistencial de Blumenau (SC), município que participou do estudo.

Segundo o relatório, a pandemia trouxe mais desafios no segmento dos doentes crônicos. Grupos de tabagismo e promoção de vida saudável, por exemplo, tiveram ações descontinuadas, e os pacientes se afastaram das unidades de saúde.

Na avaliação de Luciana Sardinha, assessora técnica de saúde pública e epidemiologia da Vital Strategies e que atuava no Ministério da Saúde até 2020, o país já vivia uma epidemia de doenças crônicas -78% das mortes estão relacionadas a elas.

Com a desassistência provocada pela pandemia, a situação piorou. Muitas pessoas que tiveram Covid-19 estão com sequelas há mais de um ano que podem se tornar duradouras. O país enfrenta também um apagão de dados sobre fatores de risco que levam às doenças crônicas



No novo relatório, foram identificados ao menos sete problemas que afetam hoje a chamada linha de cuidados dos doentes crônicos, que envolve toda a trajetória dentro do sistema de saúde.

 

  1. Gargalos de acesso ao SUS impedem que os usuários façam rastreio e tratamento das DCNT na atenção primária. Por exemplo: baixa cobertura do programa saúde da família ou horários de funcionamento inviáveis para quem trabalha durante o dia.
  2. Faltam profissionais e treinamento para a atuação em equipes multiprofissionais no SUS. Além disso, o governo federal extinguiu incentivos e agora está a cargo dos municípios a contratação de profissionais de especialidades diversas.
  3. Não há uma coordenação entre os diferentes níveis de cuidado, o que prejudica o acompanhamento dos doentes crônicos. Por exemplo: a atenção primária não conversa com a secundária (ambulatórios) ou terciária (hospitais). Essa ausência de informações aumenta o risco de condutas "às cegas" e sobreposição desnecessária.
  4. A maioria dos usuários com doenças crônicas não está sendo acompanhada. Por exemplo: o país não passou da marca de 4% de acompanhamento de hipertensos com pressão aferida a cada semestre e solicitou a avaliação da hemoglobina glicada de apenas 10% de pessoas diabéticas no último quadrimestre de 2020.
  5. Muitos usuários que sofrem de doenças crônicas não estão cadastrados em equipes da atenção primária à saúde. Hoje há 87 milhões de cadastros, quando o ideal seria 150 milhões. A ferramenta é essencial para ter o controle do número de pessoas que há na área e de quais necessitam de acompanhamento adequado.
  6. O processo de informatização da atenção primária está lento. Em dezembro de 2020, 24% de todas as unidades de saúde ainda não tinham prontuário eletrônico implantado. Ou seja, a rotina é de preenchimento de fichas à mão, que está propensa a erros e problemas de legibilidade. 7 - Baixa adesão ao tratamento por parte dos doentes crônicos. O desafio é grande, mas é preciso que as equipes de saúde adaptem estratégias para diferentes realidades e particularidades de cada território. Além dos problemas apontados no relatório, Luciana Sardinha, que atuou na área de gestão do Ministério da Saúde por 22 anos, afirma que as linhas de cuidados definidas no âmbito federal são muito amplas. Tentam abranger desde municípios pequenos até metrópoles. Ou seja, seria necessário que cada cidade as adaptasse para sua realidade.

Falta também, segundo ela, a participação dos gestores municipais na construção dessas políticas. A alta rotatividade dessas gestões acaba sendo uma barreira. "Sai um, entra outro e muda tudo. Como se nada do que foi construído anteriormente tivesse valor."

Jéssica Remédios, pesquisadora de políticas públicas do Ieps, lembra que os municípios ainda enfrentam um grande desafio no registro de informações no sistema por problemas como dificuldade com a internet, falta de computador ou de estrutura adequada. Cerca de um quarto da população não é coberta pela atenção primária.
Por outro lado, uma iniciativa que tem sido adotada por muitos municípios e que já mostra resultados positivos é a ampliação dos horários dos postos de saúde para o período da noite e aos sábados.

"Em Brasília, aumentou sensivelmente a adesão ao tratamento, ao acompanhamento do usuário só com o fato de o horário de funcionamento passar das 17h para as 20h. É quando a pessoa consegue sair do trabalho e ir à unidade de saúde", diz Sardinha.

Atualmente, o programa federal Previne Brasil oferece incentivo financeiro para extensão de horário em UBS. Além da adaptação de horários, a incorporação de novas tecnologias, como o teleatendimento, também foi citada como uma potencial ferramenta de ampliação de acesso.

Para os pesquisadores, seria preciso pensar na integração de plataformas que já existem e são amigáveis para o usuário, tendo finalidades muito bem delimitadas.

Para Sardinha, no entanto, a área da saúde sozinha não dará conta da imensa carga que representa as doenças crônicas ao SUS, uma vez que elas são multifatoriais.

Ou seja, nesses exemplos citados por Sardinha, as áreas de infraestrutura e de meio ambiente poderiam trabalhar juntas com a saúde para a melhoria dos espaços públicos e criação de hortas comunitárias.
Para Miguel Lago, é importante envolver o Legislativo nessas discussões de enfrentamento das doenças crônicas. "É ele que pode regular várias questões, por exemplo, para que população tenha acesso a alimentos mais saudáveis."

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