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Mãos Limpas: entenda a operação italiana que inspirou a Lava Jato e como ela lançou Berlusconi

Empresário chegou ao poder em meio ao cenário de terra arrasada na política italiana, apesar de escândalos também o envolverem

Silvio BerlusconiSilvio Berlusconi - Foto: Tiziana Fabi / AFP

O establishment político italiano foi atingido por uma tsunami em 1992: a Operação Mãos Limpas, uma ação capitaneada pelo Judiciário da Itália que fez uma cruzada contra casos de corrupção envolvendo políticos, empresários e altas cifras para suborno, favorecimento em contratações públicas e outros “favores”. Da terra arrasada, ascendeu ao poder o não tão incólume Silvio Berlusconi, que acabaria por ser tornar o primeiro-ministro mais longevo da História italiana. Ele morreu nesta segunda-feira, aos 86 anos.

Entre o início de 1992 e o final de 1994, os cinco magistrados centrais da Mãos Limpas em Milão puxaram um novelo que resultaria em 645 condenações, cerca de 900 prisões, na extinção de cinco partidos de diferentes tendências, na condenação do ex-premier e então líder do Partido Socialista, Bettino Craxi (que morreu na Tunísia, para onde escapou para não ser preso), em pelo menos seis suicídios de investigados, incluindo um parlamentar, e numa elite política e econômica acuada.

As acusações de atuação política por parte dos juízes e de excessos como as prisões preventivas, que por sua vez geravam novos delatores e consequentemente novos investigados. Duas décadas depois, serviria de inspiração declarada da Operação Lava Jato, no Brasil.

Deflagrada em fevereiro de 1992, a Mãos Limpas começou com uma denúncia do dono de uma empresa de materiais de limpeza ao procurador da República Antonio Di Pietro. O pequeno empresário contou que, ao perguntar sobre qual o procedimento para se tornar fornecedor de um asilo em sua cidade, um funcionário lhe disse que seria melhor oferecer um “agrado” ao gestor da instituição. Após ouvir o relato, Di Pietro decidiu verificar a história.

Em uma visita inesperada ao escritório de Mario Chiesa, integrante do Partido Socialista Italiano (PSI) e administrador do asilo Pio Albergo Trivulzio, foram encontrados 7 milhões de liras, moeda anterior ao euro equivalente a R$ 35 mil, de origem ilícita. Não havia muito o que ser feito: as cédulas repassadas haviam sido marcadas pelos investigadores, e uma escuta ambiental registrou tudo.

Não demorou para que um dossiê mostrasse o envolvimento de Bettino Craxi, um dos cardeais do PSI e o primeiro socialista a ocupar o cargo de primeiro-ministro do país, entre 1983 e 1987. Craxi era o principal operador do esquema, que abastecia o partido com dinheiro ilegal, cobrando propinas de prestadoras de serviços do governo e construtoras interessadas em obras públicas.

Contemporâneo de Craxi, o líder do Partido Democrata-Cristão, Giulio Andreotti, também foi investigado por receber dinheiro para facilitar fraudes e por seu envolvimento com a máfia italiana. Senador vitalício e sete vezes premier, foi preciso que a Justiça cassasse a imunidade palamentar de Andreotti para que ele fosse processado. Ao final do julgamento, ele foi absolvido.

Durante as investigações, acusados cometeram suicídios. Ex-presidente da estatal energética Eni, Gabriele Cagliari se matou em 20 de julho de 1993, quando estava em prisão preventiva por ser testemunha-chave e ter admitido o pagamento de propina a políticos. Três dias depois, Raul Gardini atirou contra a própria cabeça dentro de casa. O empresário que comandava a Montedison, uma das maiores indústrias químicas da Itália, mantinha ligações com pessoas influentes para favorecer seus negócios. Auditorias estimavam um rombo de até US$ 450 milhões no orçamento da empresa, que era usada para pagar propina.

Outro suicídio abalaria as investigações em agosto de 1993: Giuseppe Magro, dono de uma empreiteira, pulou do sétimo andar de seu prédio quando estava na mira da Mãos Limpas. Magro subornava funcionários públicos para ser favorecido em licitações.

Em setembro de 1993, tornou-se pública a notícia de que o juiz Diego Curtó, do Tribunal de Milão e um dos mais influentes da Mãos Limpas, havia embolsado o equivalente a algumas centenas de milhares de dólares. Outra baixa atingiria o Judiciário pouco tempo depois. Antonio Di Pietro, na época o representante da Justiça mais famoso no país, anunciaria sua saída da Mãos Limpas em dezembro de 1994.

A sujeira também respingou em Berlusconi: acusações de que a Fininvest, sua holding, havia corrompido fiscais da Receita Federal italiana, ajudaram a catalisar a transferência de Di Pietro para outro tribunal. Àquela época, contudo, ele já havia surfado no cenário de devastação total na política italiana — seu próprio irmão estava entre os presos — para o comando da Itália.

Ele foi eleito em março de 1994 em uma coalizão formada por partidos de direita. Um dos aliados era o Movimento Social Italiano, sucessor daquele que foi o maior grupo neofascista da Europa no pós-guerra. Na época, disse que havia decidido se "ocupar da coisa pública" porque não queria "viver em um país iliberal governado pelas forças imaturas e por homens ligados a fios duplos, com um passado política e economicamente falidos".

As repercussões da Mãos Limpas foram chave para derrubarem seu primeiro governo antes mesmo de uma gestação completa: a aliança durou apenas oito meses. Uma das condenações que Berlusconi sofreu (e que depois revertida), ainda no final dos anos 90 e na esteira da investigação, diz respeito aos estimados US$ 12 milhões (valores da época) de contribuição para o Partido Socialista de Craxi.

A operação acabou por encerrar a chamada Primeira República, período que começa em 1947, com a Constituição do pós-guerra. Berlusconi, que chegou ao poder em 1994, inaugurou a Segunda. A Itália se encontra hoje na Terceira República.

O magnata voltaria ao poder em 2001, governando por quatro anos e 11 meses, até 2006 — nesta época, construiu boas relações no plano internacional, aproximando-se de nomes como George W. Bush, Vladimir Putin e Muammar al-Gaddafi. A terceira passagem seria de três anos e seis meses, entre 2008 e 2011. Com frequência, contudo, fala-se da década de Berlusconi no poder.

No final dos anos 2000, os escândalos sexuais e as sucessivas gafes — como fazer chifrinho em colegas durante fotos de encontros multilaterais — começaram a pesar contra o premier. Um dos pontos sem volta veio em 2009, quando sua segunda mulher, Veronica Lario, mãe de três dos seus filhos, anunciou o divórcio ao dizer que “não poderia estar com uma pessoa que tinha o hábito de frequentar menores de idade”.

Ao todo, foram mais de 60 processos ao longo de suas vida, de crimes que vão de corrupção, prostituição de menores à associação com a máfia, ele conseguiu se desvencilhar de quase todos. A única condenação veio em 2013, 21 anos após a eclosão da Mãos Limpas: a Justiça decidiu que deveria ficar quatro anos de prisão por fraude fiscal. Ele chegou a cumprir uma pena alternativa, realizando serviço social por 10 meses.

Eleito senador em março de 2013, perdeu o mandato no final daquele ano após decisão da Justiça e ficou inelegível — algo que a Justiça reverteu após seu serviço comunitário. Após um período como eurodeputado, cargo para o qual foi eleito em 2019, voltou ao Senado no ano passado, tendo mais de 50% dos votos para o assento de Monza. Ele é dono do clube de futebol homônimo, à época recém-promovido à primeira divisão da liga nacional.

O declínio do ex-premier refletiu-se no seu partido, o Força Itália, que terminou a última disputa eleitoral em quinto lugar, com um percentual de votos que não chegou aos dois dígitos, ofuscado pela ascensão da direita e da extrema direita. Ainda assim, Berlusconi conseguiu ser a terceira perna da coalizão de governo, tentando promover-se como a voz mais moderada entre a premier Giorgia Meloni e Matteo Salvini.

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