Marido que dopava mulher para ser estuprada por estranhos dava sinais de que não era um "cara legal"
Dominique Pélicot era visto como "bom pai" e "trabalhador honesto", mas descrito por peritos psiquiátricos como "altamente perigoso"
Vítima de pelo menos 92 estupros coordenados pelo próprio marido, que a dopou para que estranhos praticassem o ato criminoso, a francesa Gisèle Pélicot sempre acreditou que era casada com um "cara legal". Foi assim que ela descreveu Dominique Pélicot na delegacia durante um interrogatório, momentos antes de descobrir que o marido era, na verdade, responsável por entregá-la a dezenas de homens, que a violaram em seu próprio quarto durante quase uma década.
Este "cara legal" era visto como um bom pai, um avô querido e um trabalhador honesto. Dominique retornará ao tribunal para testemunhar nesta quarta-feira após ser internado no hospital nesta terça, segundo o juiz que presidiu o julgamento.
Após a opinião dos peritos psiquiátricos ouvidos pelo tribunal e a exposição dos crimes dos quais ele é acusado, a normalidade descrita por amigos e familiares já não parece tão evidente.
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Estuprador em série? Saiba o que dizem os especialistas
A primeira especialista a depor na segunda-feira, a psicóloga Marianne Douteau, destacou o caráter "colérico" de Pélicot, criando um clima de "medo", "mentiras e segredos", segundo informou também a Agência France Presse (AFP). "A sexualidade do senhor Pélicot reflete sua personalidade: é ordinária em público, mas dentro de seu relacionamento conjugal é obsessiva, como em questões como troca de casais, à qual sua esposa se opunha e cuja falta compensava com o uso de fóruns pornográficos", acrescentou.
"Um homem com duas faces", resumiu a psicóloga Annabelle Montagne, citada pelo Le Dauphiné Libéré. "Ele se apresenta como alguém estável, um pai de família respeitado e apreciado, mas ao mesmo tempo é dissimulado, com uma propensão à transgressão em sua sexualidade." Gisele "foi usada como isca aqui", ressaltou outro psiquiatra, que qualificou de "alta" a perigosidade criminológica de seu marido.
O personagem que Pélicot construiu ao longo dos anos agora está desmoronando. Segundo investigações atuais da polícia, o acusado pode ser um estuprador em série. Após a prisão em 2020, os investigadores o implicaram em outros dois casos. No outono de 2022, já preso, ele foi acusado pelo estupro e assassinato de Sophie Narme, de 23 anos, em 1991, no 19º distrito de Paris. Ele negou as acusações feitas pela unidade de casos não resolvidos, dedicada a crimes em série ou não esclarecidos e com sede em Nanterre.
São acusações "baseadas unicamente em conjecturas", denunciou sua advogada, Béatrice Zavarro. Mas Pélicot também foi acusado de tentativa de estupro em Seine-et-Marne em 1999. Neste caso, seu DNA foi encontrado na cena e ele reconheceu os fatos, mas negou ter usado uma arma. O modus operandi era sempre o mesmo: duas mulheres drogadas com éter "durante uma visita a um apartamento; ambas as vítimas eram agentes imobiliários", segundo explicou a promotoria de Nanterre. Dominique também se dedicava à compra e venda de apartamentos.
Ansiolíticos escondidos
As suspeitas sobre crimes anteriores só surgiram quando a polícia começou a investigar o caso em 2 de setembro de 2020, quando o acusado foi surpreendido em um supermercado em Carpentras (Vaucluse) filmando por baixo das saias de várias mulheres com seu telefone. Mas não era a primeira vez. Em 31 de julho de 2010, em outro shopping em Seine-et-Marne, ele também foi preso por fatos semelhantes usando uma câmera oculta em uma caneta. Ele se declarou culpado e pagou uma multa de 100 euros. Nada mais.
Logo após aquele episódio, como explica a Franceinfo, Pélicot começou a frequentar Coco.fr, um site conhecido por seus conteúdos sexuais e ilegais — já fechado — onde começou a oferecer o corpo inerte de sua esposa a dezenas de pessoas que foram desfilar por sua casa para estuprá-la.
As primeiras fotos encontradas datam da noite de 23 para 24 de julho de 2011 e vão até 2020, quando ele foi preso. "A polícia me salvou a vida", disse ela na primeira sessão do julgamento. Ninguém na família suspeitou de nada. Mas o testemunho de Gisèle perante os investigadores também relata que durante os nove anos seguintes ela se levantou assustada algumas vezes enquanto seu marido a estava estuprando, provavelmente também sob o efeito de algum medicamento. O acusado usou durante anos um potente ansiolítico cujas pílulas escondia em um tênis de caminhada guardado no garagem da casa.
A história dos Pélicot se desenrolou durante 40 anos em Ille de France, a região de Paris. Eles se conheceram em 1971 e dois anos depois se casaram em Indre, a três horas da capital. Dominique havia vivido uma juventude um pouco turbulenta. Segundo a Nouvelle République, o homem abandonou cedo seus estudos para cursar um grau em eletricidade que não lhe serviu muito na vida, pois acabou trabalhando primeiro na indústria nuclear e, depois, no setor imobiliário. Mas, acima de tudo, ele havia sido criado em um ambiente familiar "com referências perturbadoras e marcado por certos segredos" e um clima incestuoso, segundo concluiu a investigação de personalidade que lhe foi realizada quando foi preso. Além disso, ele mesmo contou - e essa é uma das chaves da atenuante que sua defesa busca agora - que aos nove anos foi estuprado por um enfermeiro enquanto estava hospitalizado.
Dominique Pélicot falou sobre essa violação para sua família. Mas sua filha Caroline Darian, que escreveu um livro contando sua história - intitulado "Deixei de Te Chamar de Pai" - e criou uma fundação para lutar contra os casos de agressões sexuais com o uso de submissão química, não acredita "nessa história". Em sua declaração, ela afirmou que seu pai é "uma pessoa que mente muito". A filha também está entre as vítimas de seu pai, que tirou fotos dela enquanto estava inconsciente em roupa íntima. As imagens foram encontradas em seu computador e fazem parte de uma ramificação do caso que também está sendo julgada, assim como o fato de ele ter tirado fotos de suas duas netas nuas nos banheiros.
Sinais ignorados
Quando Gisele conheceu seu marido, ela ignorava muitos detalhes de sua biografia. E durante os anos seguintes, tiveram três filhos: o mais novo, Florian, em 1986. O caçula da família descreveu sua infância como "normal" e afirmou que seu pai "estava sempre presente para seus filhos", era "bastante educado e respeitoso" com as mulheres. Além disso, admitiu ter compreendido, "ao crescer", que seu pai escondia problemas financeiros de sua esposa.
Em 2001, o casal se divorciou por motivos financeiros, mas continuou morando junto e se casou novamente em 2007 sob um regime mais favorável. Em 2013, quando se aposentaram, decidiram se mudar para o sul da França, onde ocorreram a maioria dos estupros. "A mudança e a aposentadoria podem ter enfraquecido as barreiras defensivas na psique da vítima", observou uma das psiquiatras.
Em um interrogatório, diante da juíza de instrução, Pélicot, que afirma não ter recebido dinheiro em troca de estuprar sua esposa, explicou que sentia "prazer em vê-la tocada por outra pessoa" e fala de uma "adicção que o impediu de parar". Um psiquiatra especializado detectou nele uma "desviação parafílica", ou seja, uma inclinação para atos sexuais com pessoas não consentidas, que inclui "voyeurismo e somnofilia".
"O fato de sua esposa estar inerte aumenta sua sensação de controle", destacou esse psiquiatra. Os especialistas, após vários exames psiquiátricos realizados durante a investigação, acreditam que o acusado não sofre de "nenhuma patologia ou anomalia mental" que pudesse influenciar seus atos.