Médico vivo depois do ataque: como uma pessoa sobrevive a tiros em vários órgãos?
Ortopedista teria sido atingido com 14 disparos e sofrido lesões no tórax, intestino, pélvis, mão, pernas e pé
O único do grupo de quatro médicos que sobreviveu aos disparos efetuados durante o ataque num quiosque na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio, nesta quinta-feira, teria levado 14 tiros. Como mostrou O Globo, ele foi encaminhado para o Hospital Municipal Lourenço Jorge, onde passou por uma cirurgia de 10 horas. As demais vítimas morreram no local.
Agora, Daniel Sonnewend Proença, de 32 anos, está estável e respirando sem a ajuda de aparelhos. Mas o que faz com que o ortopedista tenha sobrevivido mesmo após tantos tiros enquanto os outros, que foram atingidos com cerca de cinco disparos cada um, não tenham resistido aos ferimentos?
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Especialistas ouvidos pelo Globo explicam que os principais fatores que determinam a gravidade de um tiro são a distância e a velocidade da bala, o local do corpo atingido e a rapidez no atendimento.
— Existe uma energia de movimento, que é a mesma que faz com que a pessoa envolvida num acidente de carro em alta velocidade sem cinto sofra consequências muito graves. Quanto maior a velocidade da bala, e mais perto da vítima, maiores são os danos — diz o cirurgião geral Ricardo Lima, professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e instrutor do curso avançado de atendimento ao trauma do Colégio Americano de Cirurgiões, ATLS (Advanced trauma Life Support).
O segundo fator, e o mais importante, é o local do corpo atingido, e quais órgãos foram lesionados. Isso porque quando a bala acerta um vaso sanguíneo considerado grande, o risco de hemorragia é alto, o que geralmente é a causa da morte imediata.
— O que mais determina a mortalidade rápida é a hemorragia, o sangramento. Quando estruturas mais vascularizadas são atingidas, o quadro é crítico. É o caso dos grandes vasos, do coração, das veias e das artérias que vão para o pulmão, dos órgãos sólidos, como fígado, baço e rins, porque sangram bastante — explica Leonardo Emilio, chefe de equipe cirúrgica do Hospital Israelita Albert Einstein (Unidade Goiânia) e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG).
No caso do cérebro, Lima explica que um grande problema, além de ser um órgão vital, é que se trata de uma cavidade dura, que não se expande. — Então se você tem um sangramento ali, isso vai empurrar o cérebro, porque ele não tem para onde ir. Essa compressão pode oferecer um alto risco — explica.
As lesões sofridas por Daniel foram no tórax, intestino, pélvis, mão, pernas e pé. As de maior preocupação seriam, portanto, as no tórax e no intestino, justamente pela vascularização dos órgãos presentes na região. As demais, ainda que possam causar ferimentos graves, não costumam ser associadas à morte instantânea, explica o ortopedista e cirurgião de mãos Leonardo Kurebayashi:
— As extremidades do corpo, como os pés e as mãos, imputem um menor risco ao paciente, principalmente devido ao sangramento ser mais facilmente controlado pelo tamanho menor dos vasos nessas regiões, reduzindo a chance de hemorragia grave — diz.
Já os tiros que atingiram o tórax poderiam ter alcançado estruturas importantes, como o pulmão e o coração. No entanto, a lesão mais grave de Daniel foi a do intestino. O órgão não está entre os de maior preocupação normalmente, porém uma bala acertou uma artéria no local.
— As lesões no intestino precisam ser operadas, mas geralmente o risco é maior a longo prazo, porque pode causar um vazamento de conteúdo intestinal para dentro da cavidade e gerar uma infecção. Por isso o acompanhamento após a cirurgia é muito importante — explica Lima.
Segundo a equipe médica, o ortopedista encontra-se em estado estável. Em um vídeo publicado nas redes sociais, ele diz: "Pessoal, eu tô bem, viu? Tá tudo tranquilo graças a Deus. Só algumas fraturas, mas vai dar certo".
Por fim, o cirurgião aponta que terceiro fator que influencia o desfecho da vítima, mesmo em locais do corpo em que um tiro tem menos risco de gerar uma hemorragia imediata, é a rapidez no atendimento, que pode ser a diferença entre a vida e a morte.
— Os órgãos com menor risco de hemorragia instantânea vão causar lesões e sangramentos cujo desfecho vai depender do tempo em que a pessoa é atendida. Se for um sangramento mediano, e o atendimento é rápido, dá para interrompê-lo, repor o sangue perdido e operá-lo a tempo. Se demorar, o quadro pode ser irreversível — diz o professor da Unirio.
O médico atingido no quiosque da Barra foi encaminhado para a sala de cirurgia cerca de 14 minutos após ter dado entrada no Hospital municipal Lourenço Jorge. Caso tivesse demorado mais tempo, o desfecho poderia ser outro.
— Essa primeira hora que se segue ao traumatismo é chamada de hora de ouro. É quando temos a maior probabilidade de reconhecer e tratar aquelas lesões que oferecem o maior risco à vida. Nesse momento é preciso ser muito rápido — complementa Emilio, da UFG.
Agora, embora estável, os próximos passos são cruciais para evitar sequelas e garantir uma boa recuperação dos ferimentos, explica o médico intensivista Luís Fernando Correia, membro do Colégio Americano de Médicos:
— Depois da fase crítica de atendimento de emergência, e das cirurgias para salvar a vida do paciente, entramos num segundo tempo em que, dependendo das lesões causadas pelos disparos e pela extensão das cirurgias necessárias, o suporte clínico e a reabilitação das funções normais da vida do paciente podem levar um tempo. Nessa segunda etapa, cuidados para se evitar infecções secundárias e prevenção de problemas causados pela imobilidade no leito são fundamentais.
Kurebayashi explica ainda que se houver lesões ósseas e nos tendões nas extremidades atingidas, pode ser necessária uma nova cirurgia definitiva para corrigi-las após estabilização clínica do paciente.