Mercosul e EUA reforçam avisos à Venezuela e defendem "solução pacífica" para crise com Guiana
Governo americano realizou exercícios aéreos militares no território guianês
Em meio às tensões entre Venezuela e Guiana pelo território de Essequibo, os líderes do Mercosul, reunidos na cúpula de chefes de Estado do bloco no Rio de Janeiro, pediram nesta quinta-feira que a América do Sul continue sendo um "território de paz" e o diálogo prevaleça entre as nações. Paralelamente, a Embaixada dos EUA no Brasil disse, em nota, apoiar uma "solução pacífica" para a crise, "inclusive por meio da Corte Internacional de Justiça", que analisa o caso a pedido da Guiana. A declaração surge no mesmo dia em que os Estados Unidos promoveram exercícios aéreos militares no território guianês — medida classificada como "provocação" por Caracas.
No Rio de Janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva cobrou uma posição do Mercosul sobre a crise na região durante seu discurso de abertura na cúpula do bloco. A preocupação com uma escalada levou o governo federal a enviar reforços militares para a fronteira nos últimos dias.
— Uma coisa que não queremos na América do Sul é guerra — disse Lula sobre a disputa. — Estamos acompanhando com crescente preocupação o desdobramento relacionado à questão do Essequibo. O Mercosul não pode ficar alheio à situação.
Em discurso, Lula fez referência à declaração adotada no último dia 22 de novembro, durante a reunião de diálogo entre os ministros da Defesa e das Relações Exteriores da América do Sul em Brasília, que “reafirma a região como uma zona de paz e cooperação".
— O que nós precisamos construir é a paz. Só com a paz podemos desenvolver os nossos países. Não queremos que esse tema contamine a retomada do processo de integração regional ou constitua ameaça à paz e à estabilidade.
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Lula pediu para que a Celac (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos) fizesse a mediação entre Venezuela e a Guiana, mas colocou o Brasil à disposição para sediar as reuniões entre os países. O presidente brasileiro instou o organismo internacional e a Unasul (União das Nações Sul-Americanas) a buscarem um “encaminhamento pacífico da questão”.
— Caso considerado útil, o Brasil e o Itamaraty estarão à disposição para sediar qualquer e quantas reuniões forem necessárias — disse Lula.
Em uma declaração conjunta divulgada ao final do evento, os Estados Partes do Mercosul se manifestaram a favor do diálogo para que a América Latina permaneça um "território de paz" — a Bolívia, cuja adesão ao bloco foi confirmada nesta quinta, não assinou o documento.
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"A América Latina deve ser um território de paz e, no presente caso, trabalhar com todas as ferramentas de sua longa tradição de diálogo", diz o texto. "Nesse contexto, [os líderes do Mercosul] alertam sobre ações unilaterais que devem ser evitadas, pois adicionam tensão, e instam ambas as partes ao diálogo e à busca de uma solução pacífica da controvérsia, a fim de evitar ações e iniciativas unilaterais que possam agravá-la."
Havia a expectativa de que os demais representantes do Mercosul se manifestassem sobre o tema ao longo do dia, mas nenhum comentário foi feito publicamente. Questionado ao final do evento, Lula também se recusou a falar sobre a disputa pela região do Essequibo.
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À imprensa, o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, disse que o assessor-chefe para assuntos internacionais da Presidência da República, Celso Amorim, se reuniu com Maduro há 10 dias. Vieira, no entanto, não deu detalhes sobre o encontro.
Entenda o caso
O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, tem repetido há dias que seu governo recuperará o Essequibo, uma região em disputa que representa mais de 70% do território da vizinha Guiana, após a aprovação de um referendo, no último domingo, que reivindicou dois terços do território do país vizinho. Para invadi-lo por terra, no entanto, Caracas teria de necessariamente passar pelo território brasileiro, o que embora seja possível, não parece provável no contexto atual, disseram especialistas ao GLOBO.
Na terça-feira, a situação foi agravada pelo conjunto de medidas anunciadas por Maduro, que determinou a criação de uma zona de defesa integral da "Guiana Essequiba", como o regime chama o território. Em discurso à nação, o presidente venezuelano também apresentou um novo mapa do país, que inclui a região, e disse que a nova versão passaria a vigorar nas escolas e universidades. O major Alexis Rodríguez Cabello foi nomeado "autoridade única" do território.
Maduro ainda ordenou à estatal petrolífera PDVSA a concessão de licenças para a exploração de recursos na região, onde empresas petrolíferas locais e estrangeiras, em especial a americana ExxonMobil e a francesa TotalEnergies, operam sob autorização do governo da Guiana.
Desde 2019, a Guiana vive um boom econômico por causa do petróleo, quando a gigante ExxonMobil começou a explorar na região reivindicada pela Venezuela depois da descoberta de enormes reservas nas águas costeiras do país em 2015. No ano passado, a pequena nação sul-americana já havia registrado um crescimento recorde de 62,3% graças ao petróleo e deve bater 37% neste ano — maiores índices do mundo.
Apoio estrangeiro
Os movimentos acontecem após o regime Maduro conseguir aprovação popular em um referendo sobre a anexação da área contestada. Desde o início das tensões, o governo guianês tem apelado para organismos internacionais, como a Corte Internacional de Justiça (CIJ), em Haia, e o Conselho de Segurança da ONU para intervirem na questão.
O Conselho de Segurança da ONU, órgão máximo da organização, vai discutir nesta sexta-feira as tensões na fronteira em uma reunião a portas fechadas, de acordo com um cronograma oficial. Na sexta passada, antes do referendo ir à votação, a CIJ reconheceu a ameaça da Venezuela à soberania da Guiana e instou o país a não tomar nenhuma atitude agressiva contra o território. Caracas, porém, não reconhece a jurisdição da corte.
O assunto também atraiu interesse dos Estados Unidos, cuja Embaixada na Guiana anunciou que realizaria exercícios militares aéreos no território do país baseando-se "em compromissos e operações de rotina para melhorar a associação de segurança entre os Estados Unidos e a Guiana e fortalecer a cooperação regional". O ministro da Defesa venezuelano, Vladimir Padrino López, classificou a iniciativa como uma "provocação".
"Esta infeliz provocação dos Estados Unidos a favor da ExxonMobil na Guiana é outro passo na direção errada. Alertamos que não irão nos desviar de nossas futuras ações pela recuperação do Essequibo. Não se enganem! Viva a Venezuela!", publicou Padrino López na rede X, antigo Twitter.
Na quarta-feira, o governo da Venezuela acusou o presidente da Guiana, Irfaan Ali, de dar "sinal verde" às bases militares dos Estados Unidos em Essequibo. "De maneira irresponsável, deu sinal verde à presença do Comando Sul dos Estados Unidos no território da Guiana Essequiba, sobre o qual a Guiana mantém uma ocupação de fato", afirma um comunicado divulgado pela Chancelaria.
O secretário de Estado americano, Antony Blinken, conversou com Ali na quarta-feira "para reafirmar o apoio inabalável dos Estados Unidos à soberania da Guiana", segundo comunicado do Departamento de Estado. Blinken fez um apelo a "uma solução pacífica para a controvérsia" e a respeito de todas as partes "pela sentença arbitral de 1899, que determina a fronteira terrestre entre a Venezuela e a Guiana".
Caracas afirma que o Essequibo é parte do território do país desde a formação da Capitania-Geral da Venezuela como colônia espanhola, em 1777, e apela para sua interpretação do Acordo de Genebra, assinado em 1966 com o Reino Unido, meses antes da independência da Guiana do Reino Unido. O documento reconheceu que havia uma demanda territorial venezuelana baseada na interpretação de Caracas de que o Laudo Arbitral de Paris de 1899, que deu o Essequibo à Guiana, era "vazio e nulo". O Acordo de Genebra estabeleceu que a solução para a controvérsia deveria ser negociada pacificamente, mas não anulou o laudo arbitral, como alega o governo Maduro.
O ministro das Relações Exteriores do Reino Unido, o ex-presidente David Cameron, alertou a Venezuela nesta quinta-feira para que não tome "medidas unilaterais".
— Essas fronteiras foram estabelecidas em 1899. Não vejo absolutamente nenhum caso para uma ação unilateral por parte da Venezuela — disse o chanceler britânico em uma coletiva de imprensa conjunta com Blinken. (Colaborou Emanuelle Bordallo e com agências internacionais.)