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AMÉRICA DO SUL

Micay, o cânion da guerrilha e da coca na Colômbia

Localizado nas montanhas de Cauca, cânion está sob o comando das forças rebeldes do Estado-Maior Central (EMC)

Guerrilheiros diante de plantação de coca no cânion Micay, na ColômibiaGuerrilheiros diante de plantação de coca no cânion Micay, na Colômibia - Foto: Raul Arboleda/AFP

Coca e guerrilheiros tomam as encostas do cânion Micay, no sudoeste da Colômbia, ponto de tensão das negociações de paz entre o governo e a principal dissidência das Farc.

Localizado nas montanhas de Cauca, está sob o comando das forças rebeldes do Estado-Maior Central (EMC), que nunca aceitou o histórico acordo de paz assinado em 2016 com a maior parte da guerrilha marxista.

É uma das principais zonas de produção de cocaína do país, fechada ao Exército e a estrangeiros, mas à qual a AFP teve acesso excepcional.

Símbolo do conflito
O verde das plantações de coca cobre as imponentes montanhas que deságuam no rio Micay. Laboratórios improvisados com telhados de zinco são montados ao longo das estradas de terra.

Cânion Micay - Foto: Raul Arboleda/AFP

Diante de todos, os agricultores misturam a preciosa folha com gasolina em barris de plástico para fazer a pasta base, que depois será utilizada por traficantes de droga para produzir cocaína.

Em uma curva, dois guerrilheiros armados verificam todos os veículos, os documentos dos ocupantes e as autorizações de circulação na área, concedidas por um conselho eleito para resolver problemas comunitários.

O imenso cânion é reduto da Frente Carlos Patiño, um dos grupos dissidentes que, segundo as autoridades, está mais envolvido no tráfico de drogas no país que mais produz cocaína no mundo.

"O cânion Micay se tornou um símbolo, uma obsessão para o governo. É como se toda a coca da Colômbia saísse daqui", diz Nelson Enrique Ríos, conhecido como Gafas, líder político do grupo.

Integrante da Frente Carlos Patiño, na Colômbia - Foto: Raul Arboleda/AFPIntegrante da Frente Carlos Patiño, na Colômbia - Foto: Raul Arboleda/AFP

Aos 51 anos, sendo 36 nas Farc, foi carcereiro da franco-colombiana Ingrid Betancourt, uma das reféns de alto escalão que esteve nas mãos do ex-guerrilheiro.

"A militarização não é a solução, caso contrário haverá guerra, com muitos mortos, feridos e deslocados. Será um massacre", destaca Gafas.

O cânion Micay está no centro da discórdia entre o EMC e o presidente Gustavo Petro, que acusou os dissidentes de usar a região para expandir suas atividades criminosas.

Petro, o primeiro esquerdista a governar a Colômbia, suspendeu em março um cessar-fogo em três departamentos, incluindo Cauca, devido ao assassinato de uma mulher indígena.

"Guerrilha semiurbana"
Este vale remoto na Cordilheira Ocidental é uma "região estratégica para grupos armados" e uma "área em disputa" entre guerrilheiros do ELN e a Segunda Marquetalia, outra facção dissidente das Farc, explica Juana Cabezas, pesquisadora do Indepaz.


Folha de coca - Foto: Raul Arboleda/AFPFolha de coca - Foto: Raul Arboleda/AFP

Cauca é o quarto departamento colombiano com mais cultivos de drogas, segundo a ONU, com 26.223 hectares plantados em 2022. Criada em 2020, a Frente Carlos Patiño consolidou o seu poder nestas montanhas.

"Quem realmente sofre" são as comunidades, com assassinatos de líderes locais, restrições à mobilidade, massacres, minas terrestres, acrescenta Cabezas.

"Sempre ouvíamos balas (...) E agora na sexta-feira (22 de março) houve bombas", diz uma moradora que pede anonimato, enquanto seu filho mostra fragmentos do explosivo que atingiram sua casa.

Segundo Gafas, os dissidentes não são financiados diretamente pelos rendimentos da cocaína ou do ouro, mas sim por um "imposto" que cobram dos traficantes.

Mas admite que atuam como autoridades, punindo crimes menores com "trabalho comunitário" e crimes graves com "uma bala de 9 mm".

Juntamente com guerrilheiros, "milicianos" à paisana trabalham em pequenos centros urbanos como Honduras, San Juan del Micay e El Plateado.

"As Farc viveram durante anos na selva, mas agora somos uma guerrilha semiurbana", diz Gafas.

Bordéis e glifosato
A população parece acostumada à presença de guerrilheiros. "Devido ao abandono (estatal) que sofremos, o governo nunca apresentou projetos de investimento social para plantarmos outras coisas", diz Adriana Rivera, 44 anos, secretária do conselho de ação comunitária.

"A única coisa que temos neste momento é o grupo que está aqui", acrescenta. Os guerrilheiros "têm nos orientado muito (...) têm ajudado muito".

Integrante da Frente Carlos Patiño, na Colômbia - Foto: Raul Arboleda/AFPIntegrante da Frente Carlos Patiño, na Colômbia - Foto: Raul Arboleda/AFP

Há festas na praça da cidade, com brigas de galo e bebida em abundância. Ao seu redor fica a boate Sinaloa, bordéis, restaurantes e lojas abastecidas com glifosato e outros herbicidas usados nos cultivos de coca.

Nesse dia também foi inaugurado um centro de saúde e entregue uma ambulância, financiada pelas comunidades e pela Frente Carlos Patiño.

"Com a folha de coca conseguimos tudo (...) Estradas, postos de saúde, pontes", diz Rivera.

O governo qualifica a iniciativa de Gafas como um "golpe às instituições" e uma estratégia para "legitimar-se" perante as comunidades.

Petro está comprometido com uma política de substituição de cultivos de drogas e de perseguição aos grandes traficantes em vez dos pequenos produtores de coca.

Embora prejudicadas, as negociações de paz devem ser retomadas em abril.

O objetivo desta vez é avançar "passo a passo, cada ponto decidido será aplicado imediatamente, antes de passar para o próximo", diz Gafas.

Ele reconhece que será difícil depor as armas: "Sem armas, não somos nada. Será a última coisa à qual renunciaremos".

Mas os moradores anseiam por paz. "A esperança das pessoas é que a guerra acabe", diz Rigoberto Gómez, 57 anos, vendedor de sorvetes em El Plateado.

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