Ministros do Superior Tribunal Militar foram monitorados na ditadura, revela pesquisa
Estudo aponta que, para agentes do SNI, Corte militar era benevolente demais com réus envolvidos em ações armadas
Com o aniquilamento das organizações de esquerda armada, em 1974, agentes do regime militar passaram a enxergar ameaças entre os próprios pares. Um dos alvos, como revela a tese de doutorado da cientista política Erika Kubik, da Universidade Federal Fluminense (UFF), foi o colegiado de ministros do Superior Tribunal Militar (STM), classificado pelos espiões do Serviço Nacional de Informações (SNI) como benevolente demais com os réus envolvidos em ações armadas no período.
A principal fonte de pesquisas de Erika foi o conjunto de 10 mil horas de gravações das sessões de julgamento do STM, de 1975 a 1979. Com base nos mesmos registros sonoros, a jornalista Míriam Leitão revelou em sua coluna no Globo que chegaram ao conhecimento dos ministros casos de tortura a presos políticos, incluindo ma mulher grávida que sofreu choques elétricos nos órgãos genitais.
Ao cruzar os áudios com dossiês do SNI, Erika constatou que, a partir de 1970, o órgão instituiu uma espécie de controle sobre as decisões do STM. Um documento da agência central do SNI mostra que as penas impostas pelas auditorias (primeiro grau da Justiça militar) sofriam redução no STM.
Os agentes afirmaram no documento que as decisões do tribunal “tem sido motivo de críticas intempestivas, em particular nos meios militares, determinando grande fluxo de informes e considerações, as mais variadas no que respeita a conduta dos juízes que compõem aquela Egrégia Corte não faltando insinuações quanto à honorabilidade e até dúvidas quanto às suas convicções revolucionárias”.
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A pesquisa atesta que o número de processos que tiveram redução ou manutenção de pena no STM superou em muito ao de condenações. Para a autora, a tendência contava com a “anuência tácita” do presidente Ernesto Geisel (1974-1979), que promovia na época um processo de abertura política e de diálogo com a sociedade civil após se convencer de que a luta armada já não representava ameaça ao regime.
— No início da pesquisa, pensava que a Justiça Militar era um braço puro e simples da repressão, mas quando passei a abrir as fontes, descobri que havia diferenças. O regime não era homogêneo. Por isso, a segunda instância sofria monitoramento sem saber. Os ministros militares queriam saber quem estava torturando — disse a pesquisadora.
Para sintonizar o STM com o projeto de abertura, diz a tese, Geisel nomeou para o colegiado os generais Dilermando Gomes Monteiro, que comandou o II Exército após a morte do jornalista Vladimir Herzog (1975), Reynaldo de Mello, que comandou o I Exército, e os almirante Júlio de Sá 169 Bierrenbach, cuja indicação “estava vinculada a atuar de maneira autônoma em relação ao governo”, analisa Erika.
— Quando aceitou a designação para o tribunal, meu avô declarou que julgaria de acordo com sua consciência. Geisel respondeu que não esperava nada diferente dele. E assim foi feito. Como ministro, ele causou imenso desconforto por jamais se curvar. Dizia que havia jurado à Constituição e não ao Exército — disse a advogada Juliana Bierrenbach.
A pesquisadora avalia que este foi o período de maior atrito entre o Executivo, o STM e os órgãos de informação e segurança. Ao monitorar os ministros militares, os agentes do SNI não estavam preocupados apenas com a absolvição ou com a redução de penas, mas com decisões que pudessem significar interferência nos procedimentos policiais.
Um dos ministros mais vigiados foi o general do Exército Rodrigo Octávio Jordão Ramos. Para o SNI, suas posições, frequentemente favoráveis às alegações dos réus e advogados, de que confissões foram obtidas sob tortura, causavam “sérios prejuízos ao combate à subversão, não só por se constituir um fator dedescontentamento na área militar, como também de motivação para a campanha adversa ao regime no País e no exterior”, ataca um dos documentos colhidos pela pesquisa.
Entre as preocupações do SNI, havia um encontro de dois ex-banidos, Lúcio Flávio Uchoa Nogueira e Iramaya Porancy de Queiroz Benjamim, com Rodrigo Octávio, no seu gabinete no STM, em 18 de abril de 1979. Nessa reunião, vigiada pelo SNI, Lúcio Flávio apresentou pareceres de advogados favoráveis a considerar o tempo de banimento para a prescrição da ação penal contra os presos políticos. Assim, os processos na Justiça Militar, em vez de suspensos no período do exílio, seriam arquivados por prescrição.
A psicóloga Cecília Coimbra, do grupo Tortura Nunca Mais, pondera que a posição heterogênea do STM não se deve apenas a uma manobra interna do governo Geisel. Para ela, a tendência ocorreu a reboque de uma campanha internacional de denúncia contra os casos de tortura nos porões do regime:
— Obviamente, as pessoas não são homogêneas. Alguns ministros eram menos duros do que os outros, mas todos eram anticomunistas ferrenhos. Essas fitas mostram que um STM diante das denúncias de tortura que já estavam sendo feitas há muito no exterior. Já havia uma mobilização internacional. Estava ficando vergonhoso para o país.