Mortos no Jacarezinho foram atingidos no rosto, abdômen e nas costas, apontam boletins médicos
Dos 28 mortos, um era policial civil e 27 pessoas que, de acordo com a polícia, atiraram contra os agentes
Boletins médicos sobre os corpos de parte dos mortos na operação do Jacarezinho, que matou 28 pessoas na semana passada na zona norte do Rio de Janeiro, mostram que as vítimas foram atingidas por arma de fogo no rosto, no abdômen e nas costas.
As descrições de corpos com "faces dilaceradas" reforçam os relatos de moradores da favela de que baleados foram retirados já mortos da favela.
A retirada de baleados em confronto com a polícia para socorro no hospital contraria determinação expressa do STF sobre formas de atuação em operações policiais no Rio de Janeiro.
O Plenário da Corte decidiu no ano passado que o Estado deveria orientar seus agentes a "evitar a remoção indevida de cadáveres sob o pretexto de suposta prestação de socorro". A medida foi determinada para que fossem preservados todos os vestígios das ocorrências nas operações.
O tiro nas costas pode levantar a suspeita de que a morte ocorreu sem confronto, embora a vítima tenha sido atingida no mesmo local de confronto de outras cinco com ferimentos distintos.
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As informações constam nos cinco BAMs (boletins de atendimento médico) produzidos no Hospital Municipal Evandro Freire, uma das três unidades para as quais foram levados os baleados na operação, a mais letal na história do Rio de Janeiro.
Os hospitais Souza Aguiar e Salgado Filho não disponibilizaram a documentação. Sabe-se apenas que as vítimas também chegaram mortas a essas unidades.
A vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, Nadine Borges, que acompanha as investigações do caso, afirmou que a descrição dos ferimentos é mais um indício de que as vítimas dos supostos confrontos foram retiradas mortas do local.
Ela afirmou que, além da decisão do STF, a prática contraria as determinações da Corte Interamericana de Direitos Humanos no julgamento da chacina de Nova Brasília, ocorrida na década de 1990.
"O que é apontado nos boletins demonstra indício de desfazimento da cena de crime. Eles transformaram uma obrigação em fazer num roteiro, às avessas, de fraude processual", afirmou Borges.
Procurada, a Polícia Civil não comentou os dados dos boletins médicos. Anteriormente, a corporação havia dito, sobre a retirada dos corpos do local, que "as circunstâncias de eventuais socorros para encaminhamento à unidade hospitalar e da retirada de corpos do cenário serão esclarecidas durante a investigação policial que está sendo acompanhada pelo Ministério Público".
"Todo o rito legal relacionado à deflagração da operação foi cumprido. Porém, em momento algum houve a estabilização do terreno, com os criminosos, todo o tempo, atirando para matar", diz a polícia, em nota.
A operação no Jacarezinho teve como objetivo, segundo a Polícia Civil, o cumprimento de 21 mandados de prisão contra pessoas denunciadas sob acusação de associação ao tráfico de drogas. O vínculo com a facção criminosa foi estabelecido por meio de fotos com armas em redes sociais.
Dos 28 mortos, um era policial civil e 27 pessoas que, de acordo com a polícia, atiraram contra os agentes. Três dos mortos eram alvos dos mandados de prisão. Segundo a Polícia Civil, todas as vítimas tinham antecedentes criminais ou vínculo com o tráfico confirmado por parentes.
Seis pessoas foram presas -sendo três alvos dos mandados expedidos pela Justiça- e foram apreendidas na operação cinco fuzis, uma submetralhadora, duas espingardas e 12 granadas
A Defensoria Pública afirma que há relatos de mortos que se entregaram para a polícia. Além disso, criticou o desfazimento das cenas dos crimes antes da realização de perícia.
Os boletins do hospital não identificam os mortos. Mas, a partir do cruzamento com informações dos boletins de ocorrência, feitos pela Polícia Civil, é possível apontar, em alguns casos, o nome ou local em que foram mortos.
Um dos baleados levados para o Evandro Freire foi Carlos Ivan Avelino da Costa Júnior, 32. De acordo com o boletim, ele chegou com a "face totalmente dilacerada" ao hospital.
Segundo os dois policiais envolvidos na morte de Carlos, a vítima foi encontrada morta após uma troca de tiros próximo ao Campo do Abóbora. Foram apreendidos dois explosivos no local, de acordo com o boletim de ocorrência.
Carlos, cujo apelido era Bracinho segundo a polícia, estava em prisão domiciliar desde 2017 e tinha registro por tráfico em 2015. A mãe dele disse à polícia que soube da morte por fotos, que ele morava na rua havia quatro anos e que era dependente químico. Ela não soube dizer se ele era do tráfico.
No relatório de inteligência da Polícia Civil, elaborado com dados da ficha criminal e redes sociais, não há fotos de Carlos com armas de fogo. Há postagens em que ele lamenta a morte de um outro traficante.
Outros três levados à unidade são vítimas do confronto na travessa Santa Laura, onde seis foram mortos -os demais foram levados ao Hospital Souza Aguiar.
Um apresenta "ferimento em parte posterior do tórax", outro "ferimento dilacerante na face" e o terceiro, "ferimentos em abdômen".
Não é possível saber a identidade deles porque o boletins de ocorrência desse caso não discrimina os BAMs de cada uma das vítimas desse confronto. A polícia afirma ter apreendido com esses mortos um fuzil e seis pistolas.
Outra vítima atendida no Hospital Evandro Freire apresentava, segundo o BAM, um ferimento de entrada no lado direito do tórax e de saída no esquerdo. Os braços estavam com "desvios ósseos e dilacerações, compatíveis com ferimento por arma de fogo".
Não é possível identificar nome e local de morte dessa vítima porque o número do BAM não consta em nenhum dos 12 boletins de ocorrência.