Crises locais eclipsam quadro de Covid grave mas estável na América Latina
Embora existam sinais de estabilização da pandemia de coronavírus na América Latina, e, por vezes, até tendência de queda nos números, a região continua sendo uma das mais afetadas pela Covid-19 no mundo.
Entre os dez países com maior número de infecções, cinco são latino-americanos: Brasil (3º), Colômbia (5º), Peru (6º), México (8º) e Argentina (9º). E, entre os dez com mais mortos por 100 mil habitantes, cinco também são da região: Peru, Bolívia, Chile, Brasil e Equador.
Mas um outro lado da crise sanitária -as consequências econômicas, políticas e sociais desencadeadas pelas medidas de restrição- eclipsa o ainda grave quadro da pandemia na região. Revoltas contra a polícia surgiram na Colômbia; marchas antigoverno voltaram a ocorrer no Chile; a instabilidade eleitoral se acentuou na Bolívia; e, na Argentina, uma crise econômica severa já deu as caras.
Anunciado nesta semana, o PIB argentino registrou uma queda de 19,1% no segundo trimestre em relação ao mesmo período do ano anterior –a cifra é pior do que a registrada na histórica crise de 2002.
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Dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), órgão da ONU, apontam para quedas de 9,9% no PIB da Argentina, 10,5% no do México, e 14% no do Peru."O vírus está sendo uma tragédia para a América Latina, e não dá para comparar o desempenho dos países da região com o da Europa e o dos EUA, porque as condições são muito particulares", diz o cientista político Steven Levitsky, da Universidade Harvard.
Assim, a dificuldade para manter cidadãos em suas casas gerou caos social na Colômbia. Em Bogotá, a polícia matou o taxista Javier Ordóñez, que, segundo os agentes, teria resistido a uma ordem de prisão. O motivo: bebia na rua com amigos, o que viola as regras de distanciamento social.
Os gritos de "por favor, parem" e "agente, eu lhe suplico", registrados em vídeo que viralizou, provocaram protestos que deixaram ao menos dez mortos e centenas de feridos na capital colombiana.
Já o Chile, tomado por manifestações contra o presidente Sebastián Piñera há quase um ano, viu a pandemia como um intervalo dos atos. Agora, os protestos quase diários de 2019 voltaram a ocorrer com intensidade, e as cenas de policiais prendendo ativistas habitam o dia a dia outra vez.
Crises políticas também se agravaram devido à pandemia. A Bolívia deve realizar, enfim, sua eleição presidencial, após três adiamentos de um ciclo eleitoral que parece interminável. Do pleito que chegou a reeleger Evo Morales para, em seguida, vê-lo renunciar, até o dia da nova votação, em 18 de outubro, o país assistiu a choques entre o MAS (Movimento ao Socialismo, partido do ex-presidente) e a líder interina, Jeanine Añez, que envolveram até uma investigação de pedofilia.
No Peru, em vez da maior taxa de mortos per capita do mundo, o que chamou a atenção recentemente foi a tentativa de tirar Martín Vizcarra do poder. Acusado de corrupção, o presidente teve de ir ao Congresso se explicar. Escapou, mas ficou sob pressão. Ainda que a liderança na taxa de óbitos tenha sido obtida com a ajuda da queda drástica nos índices europeus, o Peru já registrou quase 799 mil casos e 31.938 mortes, numa população de 31,9 milhões. A boa notícia é que a tendência dos números diários é de queda.
Neste ambiente, os únicos países da região que mantém uma boa performance desde o início da crise são Paraguai e Uruguai. O primeiro, porque sempre respeitou as medidas para conter a disseminação. E o segundo, devido a uma política intensa de testes e ao sistema de saúde sólido. "A pressão para que as fronteiras sejam abertas, porém, são imensas. O turismo é uma parte importante do PIB uruguaio [15%, incluindo setores relacionados]", diz o cientista político Daniel Chasquetti.
A situação na América Latina pode ser ainda pior do que a conhecida pelos dados oficiais, uma vez que ONGs e veículos de imprensa já alertaram para a subnotificação, como no México e no Equador. O maior símbolo dessa situação é Guayaquil, segunda maior cidade equatoriana, duramente atingida no início da pandemia. Corpos e caixões foram deixados nas ruas, muitos moradores morreram sem conseguir ir a um hospital, e enterros foram feitos às pressas, sem tempo para que testes fossem realizados para determinar a causa da morte.
Médicos independentes e organizações de direitos humanos acusam ainda as ditaduras da Nicarágua e da Venezuela de manipularem seus dados internos para esconderem a gravidade da situação. "A Venezuela demorou a ter uma explosão de casos porque é o país mais isolado na região, mas já temos muito mais infectados do que dizem os relatórios oficiais", diz o infectologista Julio Mendez.
Até o momento, segundo levantamento da Universidade Johns Hopkins, a partir de dados de governos, a Venezuela registrou pouco mais de 70 mil infecções e 581 mortes. Na Nicarágua, segundo dados do Observatorio Ciudadano, que recolhe informações de médicos e faz uma comparação com cifras de mortos por doenças respiratórias e enterros em anos anteriores, o país teve até quarta (23) 10.121 casos e 2.699 mortes. Na mesma data, o governo apontava 5.073 casos e 149 mortes.
"Os hospitais estão lotados, a pandemia continua sendo minimizada por Daniel Ortega [ditador da Nicarágua] e estamos com um problema cada vez maior de médicos e enfermeiros contaminados que tiveram de ser afastados", diz o infectologista Leonel Arguello.
A pequena quantidade de testes realizada na América Latina também dificulta a interpretação dos números. O Chile, latino-americano que mais faz exames de detecção da Covid-19 –164 a cada 1 milhão de pessoas–, está bem abaixo de Dinamarca (622/1 milhão), Reino Unido (341/1 milhão) e EUA (308/1 milhão).
Um dos grandes desafios do momento é conseguir permitir uma reabertura econômica enquanto o número de novos casos diários não cai de maneira significativa. Por outro lado, as quarentenas muito longas provaram-se difíceis de serem mantidas em uma região com alta informalidade e com Estados com pouca capacidade de obrigar as pessoas a permanecerem em casa.