Na quarentena da pandemia, Dia das Mães de 2020 será sem abraços, mas com muito afeto
Em tempos difíceis, o cuidado materno é um dos valores que ajudam a encarar as restrições do dia a dia. Filhos buscam vencer a saudade pela tecnologia.
Em tempos difíceis, poucos gestos primitivos são tão primordiais quanto o abraço de mãe. A prova disso é fácil de encontrar nos milhões de poemas, músicas, romances, peças teatrais, cartas e “textões” de rede social dedicados à figura da maternidade ano após ano. Uma presença forte na vida de qualquer pessoa que se reflete pelos séculos nas artes e crenças religiosas – basta ver as centenas de representações de Nossa Senhora criadas pelos católicos – e tornou-se até lugar-comum em consultórios de psicanálise e outras terapias mundo afora.
Hoje, em um cenário de crise, como este causado pelo novo coronavírus, o cuidado materno é um desses valores que muitos procuram preservar para manter o equilíbrio emocional e, assim, saber lidar com uma rotina de privações e incertezas. E, inevitavelmente, o Dia das Mães de 2020 vem marcado pelo rápido avanço da Covid-19 em Pernambuco e no Brasil. O momento adverso em torno da data, que impõe um regime de quarentena sem precedentes no mundo, não deve suscitar apenas tristeza, mas também reflexões sobre os laços afetivos que nos impulsionam a viver da melhor forma possível.
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Mais do que pensar na “mãe biológica”, a data rememora que esse papel pode ser exercido por outras pessoas, como avós, tias, tios e até pais e outros parentes, dependendo do contexto familiar de cada um. A psicóloga Gabriela Félix propõe que, ao se falar em Dia das Mães, a maternidade seja vista mais como uma “função” do que como um grau de parentesco. “Mãe seria aquela pessoa na função de cuidado, que biologicamente vai parir e amamenta e socialmente é a que acorda, sabe quando o filho está com fome, o tipo de choro... Atribuímos muito essa figura à mulher, e comumente acaba sendo, mas não podemos esquecer os outros arranjos de família”, argumenta. “Quem exerce a função materna aposta naquela criança, aposta que aquele pedacinho de carne vai virar ser humano, crescer, falar, amar, e incentiva as outras pessoas da família a também apostarem nela”.
Este ano, assim como várias esferas da vida cotidiana modificadas pelo coronavírus, incluindo trabalho, escolas e faculdades, eventos culturais e até hábitos de higiene, o segundo domingo de maio será diferente de todos os outros. Sem beijos nem abraços apertados, sem mesa cheia de gente, sem restaurantes lotados: o dia deve ser comemorado de acordo com as regras do isolamento social que perdura há quase dois meses. Quem mora com a mãe deve tomar cuidado para manter o mínimo de contato físico possível. E quem não mora, só poderá se fazer presente nas telas do celular, tablet ou computador.
Neste último caso, há quem esteja sem ver a própria mãe desde março. A saudade é inevitável, mas como driblá-la? Para a psicóloga Gabriela Félix, embora cada um vá reagir de uma maneira particular, ajuda ter em mente a ideia de que seguir as restrições indicadas para o combate à pandemia é, por si, uma demonstração de cuidado com quem cuida da gente desde a infância. “É uma questão coletiva, de cuidado para não expor sua própria mãe a nenhum tipo de perigo. Pensar que faz um bem a ela não estando em casa. E não sou só eu que estou passando por isso, é o mundo todo”, reflete.
Comemoração virtual
A analista judiciária Renata Gondim, de 42 anos, é uma das recifenses que terão de ficar no contato virtual. Ela e o marido contraíram a Covid-19 no fim do mês passado e se recuperam no apartamento onde moram, em Setúbal, Zona Sul da Cidade. Na quarentena total, desta vez, não poderá participar do tradicional encontro na casa de dona Gilda, 69, no bairro do Espinheiro, Zona Norte. “A minha mãe é médica, idosa e hipertensa. Eu até me aperreei porque, na Páscoa, fui de carro ver ela e meu pai no estacionamento do prédio. Depois, teve um dia que vi eles de longe, não cheguei a falar de perto, mas, mesmo assim, a gente ficou morrendo de medo. Aí, realmente, não vou poder vê-la de jeito nenhum”, conta.
Como muitas outras, a família de cinco filhos, 12 netos e dois bisnetos terá que adaptar o costume de se reunir no Dia das Mães à rotina imposta pelo novo coronavírus. Até 2019, era tudo diferente. “É a primeira vez que eu fico sem a minha mãe, que perdi no ano passado”, diz Gilda Gondim, que costumava visitar a avó de Renata em João Pessoa, onde ela morava. “Sempre ia na véspera, tomava o café da manhã com mamãe e vinha para casa. Aqui, geralmente, era um almoço ou jantar”, recorda. Agora, as refeições serão só com o marido, Reinaldo. “A gente não tem saído para nada”, ressalta.
Em meio a tantas restrições, o jeito será a comunicação por videochamada. “Dá muita saudade. Sempre que tenho algum problema, eu procuro o colo dela. E esses dias têm sido difíceis. Tive esse susto de ter pego Covid e a gente se preocupou muito com meu marido, que teve que tomar medicação mais forte. Eu tenho dois filhos, um de sete anos e um de três, e fiquei com medo que as crianças pegassem. Queria ela perto para nos ajudar, mas não podia. Esse sentimento de saudade é não poder estar perto daquela que me dá mais força”, descreve Renata.
Apesar dos sustos e da falta, a barreira física não impedirá a demonstração do afeto que une a família. “O amor é dentro da gente”, considera Gilda Gondim. “Sei que sou muito querida pelos meus filhos e eles vão estar me abraçando a distância e pedindo pela minha saúde. Agradeço a Deus por todos eles, que levam para os meus netos aquilo que eu acho mais essencial: o amor e a boa formação”.
Afeto a distância
Outra peculiaridade deste Dia das Mães está na forma de presentear. A estudante de medicina Ana Carolina Cantarelli, 23, mora há seis anos em João Pessoa, e, apesar de estar a apenas uma hora e meia de carro da Capital pernambucana, não poderá passar o domingo com a mãe e a avó, que vivem no bairro da Tamarineira, Zona Norte. A ausência na mesa será compensada com o presente que a filha comprou pela internet.
Isolada com o namorado e os sogros no estado vizinho, Carol não se encontra com a mãe desde o início da quarentena, em março. “Eu não sei quando poderei ir porque, das outras vezes, mesmo que tivesse algum motivo para faltar o Dia das Mães, eu sabia que podia me programar para a outra semana. Agora estou presa. Não sei quando vai ser seguro ir, porque o fato de eu ir pode levar alguma coisa ruim para quem está em casa”, avalia. Sentindo a distância, a estudante reforçou o contato virtual com a família e criou um grupo com o irmão e os pais para que a mãe saiba como todos estão.
Do lado de cá, Alena Cantarelli, 55, também sente saudades. Com os dois filhos longe, Carol na Paraíba e o outro, Guilherme, no Rio de Janeiro, a servidora pública mora no mesmo andar da mãe, dona Antonieta, 85. Mesmo assim, ela diz que evita entrar no apartamento vizinho, priorizando a comunicação pela varanda ou por interfone. “Eles [meus pais] não saem de jeito nenhum e eu não vou muito lá porque ainda saio para fazer as compras no supermercado. E também fico preocupada com os meninos”, comenta. “Este ano vai ser meio solitário. Só estou aqui com o meu marido. Vou comprar um bolinho, tirar um pedaço e entregar a ela para alegrar um pouquinho”. Sem festa, dona Antonieta só deseja que todos fiquem bem. “Saúde para a família e o mundo inteiro”, pede.
Cuidados
Se as recomendações de distanciamento valem para a população em geral, o desafio é maior para quem atua na rede de saúde. Embora não lide diretamente com pacientes de Covid-19, a anestesista Yumi Muta, 30, trabalha em hospitais que atendem essas pessoas e, por isso, não vê a mãe, Fátima, há quase dois meses. “A gente se fala sempre pelo WhatsApp ou FaceTime. Eu fico com saudade, mas o medo de meus pais adoecerem supera isso”, afirma.
Assim, a relação de mãe e filha se dá sem o contato físico. “Às vezes, ela compra alguma coisa e deixa na portaria. Geralmente, no Dia das Mães, a gente faz almoço lá, mas este ano não vai ninguém. Eu vou mandar uma cesta de café da manhã e ligar”, planeja. Dona Fátima, 65, também trabalha em unidade de saúde, um Centro de Atenção Psicossocial (Caps) em Camaragibe, mas, por ser do grupo de risco, fica mais tempo em casa. “Só vou uma ou duas vezes por mês para ver os encaminhamentos que tenho que fazer”, relata. “É um pouco triste, mas ainda bem que a gente tem esse recurso (a videochamada) para se ver”.
Como o isolamento é a principal forma de impedir a propagação do vírus, a recomendação é, de fato, apostar na comunicação virtual. “No meu caso, não dá [para encontrar pessoalmente]. Eu trabalho na linha de frente em mais de um serviço e minha mãe tem mais de 60 anos. Tive que poupá-la porque não tenho como garantir que estou livre da doença”, afirma o infectologista João Paulo França. E para quem vive perto e precisa sair eventualmente, é preciso tomar todas as precauções, mesmo que faça uma visita rápida. “Quem tem mãe em casa e é idosa, respeite as orientações padrões. Use a máscara, ande com álcool em gel, fique a dois metros de uma pessoa para outra”, recomenda o médico.
Por isso, vale buscar na tecnologia uma aliada. “A gente sabe que não é a mesma coisa, mas todo mundo tem que fazer um sacrifício. A tecnologia vem para aproximar. Você pode escrever um texto ou uma carta. Acho que ela vai se emocionar do mesmo jeito. Tem que se pensar em alternativas”, ratifica o infectologista. Com todos esses meios disponíveis diariamente, a demonstração de cuidado e afeto vai além de qualquer data e o contato deve ser mantido. “Seria interessante que se pensasse em cuidar de quem cuida o ano inteiro, não só num dia específico”, reforça a psicóloga Gabriela Félix.
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