Nacionalismo, economia e valores tradicionais: Putin lança suas bases para a Rússia
Empossado em seu quinto mandato, presidente russo deve conter dissidências e intensificar guinada conservadora, mas ele reconhece que país vive 'momento difícil'
No momento em que as atenções de governantes, diplomatas e milhões de civis estavam voltadas a um possível acordo de cessar-fogo na Faixa de Gaza, após sete meses de guerra entre Israel e Hamas, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, vivia uma de suas melhores semanas desde o início de outro conflito, a invasão da Ucrânia.
Empossado em um novo mandato, ele colecionou vitórias em território ucraniano, fez discursos desafiadores, vistoriou tropas, homenageou veteranos da Segunda Guera Mundial na Praça Vermelha e desfilou planos para os próximos seis (ou 12) anos. Mais do que isso, consolidou visões que tem aplicado há mais de uma década.
— O destino da pátria, o seu futuro, depende de cada um de nós — afirmou Putin na quinta-feira, durante a parada do Dia da Vitória no front ocidental na Segunda Guerra Mundial, na Praça Vermelha. — Estamos avançando, confiando nas nossas tradições centenárias, e confiantes de que juntos garantiremos um futuro livre e seguro para a Rússia, para o nosso povo unido.
Reeleito em março com quase 90% dos votos (e em meio a denúncias de fraude, coerção e perseguição a rivais), Putin tomou posse na terça-feira, em uma cerimônia reduzida. Ao melhor estilo dos famosos planos quinquenais dos tempos de União Soviética, assinou um decreto com metas e promessas para seus próximos seis anos — ou 12, caso queira se candidatar novamente em 2030, quando terá 77 anos.
Como definiu o site Meduza, o texto traça um “futuro maravilhoso”: o país se tornará a quarta economia do mundo, cada família terá uma residência de ao menos 33m², o salário mínimo terá um reajuste considerável e a expectativa de vida saltará dos atuais 73,46 anos para 78 anos até 2030, e 81 anos até 2036. O decreto promete queda na desigualdade, maior acesso dos estudantes à educação e a elevação das taxas de natalidade, para até 1,8 filho por mulher em 2036. Segundo o Banco Mundial, a taxa hoje é de 1,49 filho, e está estagnada desde 2019, apesar dos muitos incentivos estatais para os casais.
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Além de números, o decreto de Putin estabelece que na base do desenvolvimento do país estão “os valores e princípios espirituais e morais tradicionais russos”: termos que no passado assombraram o líder russo, mas que se tornaram suas bandeiras políticas.
Guinada nacionalista
Após sua eleição em 2012, Putin começou a fazer acenos a setores conservadores, incluindo nacionalistas que chegaram a protestar contra ele, e incorporou pautas como a perseguição à comunidade LGBT+ — a chamada “Lei Anti-Gay”, que proibia qualquer tipo de “propaganda de relações não tradicionais”, foi aprovada em 2013. No ano seguinte, a invasão da Crimeia e o apoio às forças separatistas no Leste Ucraniano deu voz a nomes como Alexander Dugin, visto por alguns como o “ideólogo” de Putin: Dugin acredita na restauração da “Rússia histórica”, e defendeu o genocídio dos ucranianos.
Na terça-feira, ao ser empossado, Putin disse que sua prioridade era “preservar o povo”, argumento semelhante ao usado para justificar algumas das mudanças na Constituição, aprovadas em 2020, como o veto ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou quando a Suprema Corte classificou o “movimento LGBT” como “extremista”, no ano passado.
— Tenho a confiança de que o apoio a valores familiares e tradições de séculos continuarão a unir o público e associações religiosas, partidos políticos e todos os níveis de governo — disse o presidente recém-empossado.
A nova velha Rússia de Putin, que ainda preza o passado soviético — como visto na parada do Dia da Vitória — mas que busca inspiração no regime imperial que os bolcheviques derrubaram em 1917, é um país onde o nacionalismo é incentivado, a dissidência combatida, e que ainda se vê como grande potência global.
Protestos contra a guerra foram reprimidos com força, opositores jogados na cadeia ou mortos em circunstâncias inexplicáveis. A fuga de cérebros, um problema antigo, foi intensificado com a perseguição em universidades e escolas, e aqueles que ficaram se viram diante de currículos “atualizados” — em dezembro, Putin chegou a dizer que “guerras são vencidas por professores”, algo que repetiu algumas vezes desde então.
Nos dois últimos anos, o governo investiu forte na militarização e na promoção dos “valores nacionalistas” nos ensinos fundamental e médio — o orçamento para 2024, designado como Ano da Família, destinou 45,85 bilhões de rublos (R$ 2,57 bilhões) para a “educação patriótica”. Isso inclui desde cerimônias de hasteamento de bandeiras até acampamentos militares para crianças. Putin sinalizou que essa é uma tendência de longo prazo.
— Precisamos garantir a continuidade confiável do desenvolvimento de nosso país nas próximas décadas, e criar novas gerações que fortalecerão a Rússia — disse na posse . — Nosso Estado e nosso sistema sócio-político precisam ser fortes e resistentes a qualquer ameaça e desafio, garantindo o desenvolvimento estável e progressivo, assim como a união e a independência do país.
Estabilidade controlada
O nacionalismo de Putin se confunde com a ideia de excepcionalismo, ligado ao que vê como papel singular da Rússia no mundo. Um papel cada vez mais longe do Ocidente — ao mesmo tempo em que disse na posse que não fechava a porta ao diálogo com Europa, EUA e aliados, os atacou por, segundo ele, incitar disputas ao redor do planeta, com direito às costumeiras ameaças nucleares.
— O revanchismo, a zombaria da história e o desejo de justificar os atuais seguidores dos nazistas fazem parte da política geral das elites ocidentais para incitar cada vez mais conflitos regionais, inimizades interétnicas e inter-religiosas e para restringir centros soberanos e independentes de desenvolvimento mundial — disse na cerimônia do Dia da Vitória. — A Rússia fará tudo para evitar um conflito global, mas não permitiremos que ninguém nos ameace. Nossas forças estratégicas estão sempre em alerta.
Apesar do tom triunfante de quem tem tido relativo sucesso ao evitar as sanções internacionais, e de quem tem aproveitado o impasse ocidental para avançar na Ucrânia, Putin reconheceu que são “tempos difíceis”.
Na prática, para analistas políticos e assessores do Kremlin, isso é um sinal de que ele evitará grandes reviravoltas, e poderá intensificar as políticas atuais: a repressão implacável, a concentração cada vez maior de poder (com um círculo político restrito) e a retórica antiocidental como ferramenta de mobilização ou, usando um termo dos tempos de Lênin, agitação pró-guerra .
— Vocês, cidadãos da Rússia, confirmaram que o país está no caminho certo. Isto é de grande importância neste momento, pois enfrentamos sérios desafios — disse no discurso de posse. — Estou confiante de que passaremos por este difícil período com dignidade e emergiremos ainda mais fortes. Iremos, sem dúvida, realizar tudo o que planejamos a longo prazo, todos os projetos de grande alcance que visam alcançar os nossos objetivos de desenvolvimento.