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RIO DE JANEIRO

"Não fiz nada para adquirir. O erro foi de irresponsáveis", diz infectada por HIV após transplante

Em entrevista ao Fantástico, uma das seis pessoas que fizeram transplantes na rede pública estadual relata como descobriu a infecção e denuncia falta de suporte

Sócios do Patologia Clínica Doutor Saleme, investigado pela contaminação de pelo menos seis pessoas por HIV Sócios do Patologia Clínica Doutor Saleme, investigado pela contaminação de pelo menos seis pessoas por HIV  - Foto: Reprodução

A felicidade de receber um novo rim e finalmente deixar de fazer hemodiálise deu lugar à indignação para uma dos seis pacientes infectados com HIV, após fazer transplante na rede pública de saúde do estado. Em entrevista ao “Fantástico”, da TV Globo, a mulher — que preferiu não se identificar— relatou que foi comunicada do caso no último dia 3 de outubro e encaminhada para uma unidade de saúde, onde fez um teste e constatou a infecção.

Na época do transplante, os exames clínicos de dois doadores soropositivo feitos pelo laboratório PCS Lab Saleme, contratado pela Fundação Saúde, não atestaram a presença do vírus. Diante do ineditismo do caso, o Ministério da Saúde vai rever a portaria que regulamenta o Sistema Nacional de Transplantes.

— É como se o chão se abrisse, sabe? Vai mudar a minha vida completamente, porque antes era só os meus remédios para não ter rejeição dos meus rins. Não fiz nada para adquirir isso. O erro foi de pessoas irresponsáveis. Minha família está revoltada, porque a gente entra lá com a maior confiança de que vai dar tudo certo— disse ao “Fantástico”.

Sem apoio
Após testar positivo, ela disse que não recebeu nenhuma orientação sobre tratamento ou remédios. Apenas que deveria voltar para uma consulta no dia 29. Ela só passou a ser procurada quando os casos foram revelados pela Bandnews FM, na última sexta-feira, e a consulta remarcada para amanhã. A paciente também disse que não recebeu nenhum tipo de atendimento clínico ou psicológico, ao contrário do que a Secretaria estadual de Saúde informou.

O laboratório PCS Lab Saleme, responsável pelos exames de análises clínicas na Central Estadual de Transplantes, também atuava em ao menos outras 12 unidades de saúde estaduais, como hospitais, institutos, UPAs e centros especializados.

Com diversas irregularidades, ele foi interditado pela Anvisa e Vigilância Sanitária estadual no último dia 4. Três dias depois, um dos sócios enviou um ofício à Fundação Saúde informando que tinha feito melhorias. Segundo mostrou o “Fantástico”, o laboratório clínico não possuía licença para funcionar dentro do instituto onde a paciente que recebeu os rins foi atendida, na Zona Sul. A vistoria mostrou ainda que as amostras de sangue estavam sem identificação, não foram apresentados registros de treinamento dos funcionários, o material era armazenado em uma geladeira comum, e os aparelhos de ar condicionado estavam malconservados e sem condições de higiene.

De acordo com a Secretaria de Saúde, em outubro de 2023, venceu um pregão eletrônico para prestar serviço de análises clínicas em unidades geridas pela Fundação Saúde, órgão vinculado à Secretaria estadual. De acordo com o Portal da Transparência, mais de R$ 21 milhões foram pagos à empresa desde 2022, entre parcelas dos contratos e termos de ajustes de contas.

O diretor-geral da Central Estadual de Transplantes, Alexandre Cauduro, escreveu num ofício interno esta semana informando que a atual gestão não foi ouvida durante o processo licitatório, nem participou da elaboração do contrato. O diretor ressaltou que questionou a habilitação do laboratório porque não foram apresentados os documentos necessários para avaliação.

Dois sócios do PCS Lab Saleme são parentes do ex-secretário de Saúde e deputado federal Luiz Antônio de Souza Teixeira Júnior, o Doutor Luizinho (PP). Matheus Sales Teixeira Bandoli Vieira, é primo dele e já foi empregado da Fundação Saúde. O outro sócio, Walter Vieira, é marido da tia do atual deputado. A irmã de Luizinho, a dentista Débora Lúcia Teixeira Medina de Figueiredo, é diretora na Fundação Saúde, empresa responsável pela escolha do laboratório. A contratação aconteceu três meses depois que ele deixou a secretaria e é investigada pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ), para verificar se houve irregularidades.

O caso levou o Ministério da Saúde a considerar o endurecimento das regras para a escolha de laboratórios que realizam os testes de infecção em processos de transplante de órgãos. Segundo o governo do estado, o erro aconteceu nos testes realizados antes da autorização do transplante. No ministério, a interpretação é de que é preciso haver uma mudança nos critérios para escolha dos laboratórios depois do incidente, inédito na história do serviço.

Na última sexta-feira, o ministério também determinou uma auditoria urgente pelo Departamento Nacional de Auditoria do SUS (Denusasus) no sistema de transplante do Rio, além da apuração de eventuais irregularidades.

Segundo a Secretaria estadual de Saúde, todos contratos com o PCS Lab foram suspensos desde o início do mês, quando os casos foram descobertos. Outra empresa será contratada em regime emergencial para prestar o serviço. A pasta instaurou sindicância e criou uma equipe multidisciplinar para prestar apoio às vítimas.

Órgãos infectados
Entre os transplantes feitos estão os de rins, fígado, coração e córnea. A notificação do primeiro caso foi feita no dia 10 de setembro, quando uma pessoa que tinha recebido um órgão em janeiro procurou atendimento em um hospital, e exames constataram a presença do vírus.

Antes do transplante, um exame atestou que essa pessoa não tinha a doença. O hospital notificou a Secretaria estadual de Saúde, que refez os testes em uma amostra do sangue do doador, guardada no Hemocentro do Rio. O resultado deu positivo.

A secretaria localizou as pessoas que tinham recebido órgãos deste doador e confirmou que outras duas tinham sido infectadas. Os outros três pacientes —que receberam órgãos do outro doador —foram descobertos no início do mês quando um deles também procurou atendimento e constatou que estava com HIV.

— É evidente que a falha ocorreu. É inadmissível. Vamos testar amostras reservas de 286 doadores, cujas coletas aconteceram de dezembro de 2023 a setembro de 2024 — disse a secretária estadual de Saúde, Cláudia Mello, em entrevista ao GLOBO.

A paciente manifestou revolta:

– Não estão lidando com a nossa vida só. Foi só dinheiro que viram. Não tem justificativa. Quero punição – disse a vítima.

Em nota, o laboratório PCS Lab Saleme informou que os resultados preliminares da sindicância interna apontaram erro humano no resultado dos dois testes de HIV, e que está à disposição das autoridades e do Governo do Estado.

A Polícia Civil, a Polícia Federal, o Ministério Público e o Conselho Regional de Medicina investigam o caso.

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