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Opinião

Negar a pobreza menstrual representa a consagração da aporofobia e misoginia

Antes de expor aqui o que penso, preciso explicar o pomposo título do texto e, por conseguinte, a razão dessa minha escrita. Explico, então, as três questões que estão por trás dessa titulação.

Por pobreza menstrual, entenda-se o estado pelo qual muitas adolescentes de baixa renda, socialmente vulneráveis, têm encarado o desafio constrangedor de não ter acesso aos absorventes que demandam para seus ciclos menstruais. No bojo de uma pobreza estrutural, o problema ganhou uma difusão exponencial e merece toda atenção. Entre tantos gastos públicos desconexos, o que custa um pacote de absorventes diante de um contexto já estabelecido pelas verbas do SUS, conforme constou na proposta e que recebeu o veto presidencial? Por se achar que o problema é narrativa de esquerda? Por que existem prioridades com recursos para emendas paroquiais? O certo é que mais esse problema de desprezo com o sentimento de muitas mulheres, que se projeta hoje no contexto das condições de pobreza, só ganhou dimensão agora pelos novos tempos, onde a coragem de se expor e se revelar diante dos dramas sociais cotidianos se faz cada vez mais presente. É impossível deixar de se enxergar que o mundo é outro e muda numa velocidade impressionante.

Aporofobia representa a desumana situação de muita gente que tem aversão à pobreza. É fato que uma parte substancial do topo da pirâmide social pratica, com frio realismo, tudo aquilo que diziam na ficção personagens como Justo Veríssimo (de Chico Anysio) e Caco Antibes (Miguel Falabella). Ambos enfáticos nos seus desprezos espontâneos pelos pobres. Na verdade, representam palavras e atitudes que nos acostumamos a ouvir e sentir nos ambientes elitizados. Infelizmente, só dão coerência para os pobres de espírito, que não só fecham os olhos para o entorno, como alimentam esse "apartheid", por mais sutil que sejam aqueles gestos de desprezo.

Por fim, uma retórica não menos sutil de misoginia, que trata da constatação de um desapego pelas lutas que ainda cabem às mulheres, sobretudo, nos seus exercícios de busca por liderança e poder. E o danado é que existe uma estrutura pública orgânica (um ministério), que teoricamente foi criado para executar uma política pública a favor das mulheres. Só que o mesmo não deu qualquer ênfase na defesa da distribuição dos absorventes para as mulheres carentes. As razões ideológicas falam mais alto que o impedimento das condições de renda, dada a intenção de se ter acesso a um item básico de higiene que pode comprometer a saúde pública?

Dito tudo isso, sinto-me pronto para aqui exteriorizar minha decepção pela postura política representada pela insistência em defender valores desconectados com a realidade do mundo. A política econômica do governo, bem alinhada com sua base política e supervalorizada por aliados fanáticos, jamais  se mostrou comprometida com o combate à desigualdade social. Nesse sentido, minimizar por soberba ideológica os altos níveis de pobreza, para tratá-la apenas como mera superficialidade pela motivação populista e eleitoreira, só consagra o tamanho de uma aporofobia natural e espontânea.

Dada uma sequência tecnicamente lógica, de falta de planejamento governamental, da ausência germinal de um ambiente comprometido com políticas sociais e daí a falta de estratégias para contemplar a população mais vulnerável, não seria mesmo provável o reconhecimento de ações voltadas para outros grupos excluídos.  Nesse particular, seria improvável o reconhecimento de políticas públicas que ajudem a mudar efetivamente o papel da mulher na sociedade. Ainda mais se ela for originária da periferia, de uma região economicamente pobre, que sofre preconceitos de raça e gênero, além de compor a faixa de renda que lhe inclua na extrema pobreza.

Como todos esses registros são factíveis, não há como concluir de forma diferente a razão desse veto presidencial, com total apoio de aliados, políticos ou não. Enquanto eu e tantos outros mais sensíveis enxergam a "pobreza menstrual" como uma mudança comportamental gerada pela coragem e ousadia dos novos tempos, alguns encaram o problema como factual, inoportuno e inconsequente. Por essas e outras, haja aporofobia e misoginia. Nada mais pode ser tão límpido.

Francamente, penso que nem precisa ter a companhia diária de qualquer mulher, seja ela companheira, filha ou amiga, no sentido de se entender a extensão representada por algo que Rita Lee disse muito bem, na sua canção "cor de rosa choque". De fato, "mulher é bicho esquisito, todo mês sangra, um sexto sentido, maior que a razão". Não poder exercer o direito a um meio de higiene por meras razões financeiras, a ponto de se levar muitas mulheres ao constrangimento individual com implicações sociais, isso  constitui um problema de saúde pública, com consequências que carecem de decisão política. Isso é fato.

Vale, por fim, uma frase de Clarice Lispector, que pode servir de lição para este novo momento: "às vezes não entendo, porque apenas sinto, pois creio que tenho medo de um dia entender e deixar de sentir". Que a gravidade do problema expresso pela pobreza menstrual seja logo sentida e daí entendida, em nome de uma ginocracia evidente, embora ainda que adormecida.


*Economista e colunista da Folha de Pernambuco



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