'Netanyahu odeia a paz e usa negociações para prolongar guerra', diz ex-ministro da Palestina
Em entrevista ao jornal O Globo, Atef Abu Saif fala de novo livro em que apresenta na sexta-feira na Flip, e lamenta que olhos do mundo tenham se desviado do enclave
Em 7 de outubro de 2023, Atef Abu Saif, ministro da Cultura da Palestina, nadava no mar de Gaza quando ouviu as primeiras explosões.
O céu cheio de fumaça indica o início da guerra que já matou quase 42 mil pessoas no território palestino. Ele ainda não sabia dos ataques terroristas do Hamas que deixaram 1.200 mortos em Israel.
Naquele mesmo dia começou um diário. Em “Quero estar acordado quando morrer”, lançado no Brasil pela Elefante, ele narra, dia a dia, a destruição de Gaza e luta para permanecer vivo e voltar para Ramallah, na Cisjordânia. Em 30 de dezembro, ele pôde atravessar a passagem de Rafah e chegou ao Egito.
Saif, que também é romancista, deixou o governo palestino em março. Desde então, tem viajado para lançar o livro e denunciar a situação de Gaza.
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Na sexta-feira, participa da 22ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Antes de embarcar, conversou com o jornal O Globo e lamentou que a invasão israelense do Líbano tenha desviado os olhos do mundo de Gaza.
Na entrevista exclusiva, chamou atenção para o morticínio de jornalistas na guerra e rebateu as acusações de corrupção e falta de legitimidade enfrentadas pela Autoridade Nacional Palestina.
Qual é a sua principal lembrança do primeiro dia da guerra?
Eu estava na praia quando tudo começou e tive que sair correndo. O que mais se faz na guerra é correr, fugir da morte. Ainda ouço o som dos meus passos molhados na areia. Fui à Casa da Imprensa. Havia outros três jornalistas lá. Os três morreram na guerra. Imaginávamos que, na pior das hipóteses, o conflito duraria até o fim do ano.
No fim do livro, seu pai ainda estava vivo em Gaza. Você ainda tem familiares no território?
Meu pai morreu em abril, num campo de refugiados. Ficou três semanas sem comida, quando chegou ao hospital, os médicos não tinham mais o que fazer. 138 membros da minha família morreram na guerra. Tenho irmãs e irmãs em Gaza. Eles vivem em barracas, que precisam desmontar e carregar nos ombros quando o exército israelense os obriga a mudar de lugar. As barracas já estão se desfazendo e hoje as pessoas em Gaza odeiam a chuva, porque se afogam nas próprias tendas.
Quais são as consequências da guerra no Líbano para Gaza?
[Benjamin] Netanyahu [premier de Israel] quer tirar a atenção do mundo dos crimes que ele comete em Gaza. Só hoje (dia 2) morreram 83 pessoas em Gaza, mas não foi notícia em lugar nenhum. O objetivo dele nunca foi libertar os reféns, mas nos expulsar da nossa terra, acabar com Gaza. Para não ser forçado a um acordo de cessar fogo, ele invadiu o Líbano.
A comunidade internacional teme que o Irã entre na guerra e escale ainda mais o conflito.
O sonho de Netanyahu é trazer todo mundo para essa guerra. Ele odeia a paz e usa as negociações para prolongar a guerra. Acho que Irã e Israel podem chegar a um entendimento se houver mediação. Se a guerra escalar, ela não será mais apenas regional. A principal causa dos conflitos na região é a Questão Palestina. Não existirá um Oriente Médio seguro, estável e em paz se os palestinos não tiverem suas demandas e aspirações atendidas.
Jornalistas são personagens importantes no seu livro, que é dedicado a Bilal Jadallah, diretor da Casa da Imprensa, em Gaza. Segundo o Comitê para a Proteção dos Jornalistas, ao menos 116 profissionais morreram em Gaza, que é o conflito mais mortífero para a imprensa de que se tem registro...
Esta é a maior guerra contra o jornalismo na história. Um jornalista morre a cada dois dias. Isso não aconteceu nem na Segunda Guerra Mundial. Israel tem medo das notícias e vai atirar em quem não transmitir as imagens que eles querem. Em 7 de outubro, não havia jornalistas estrangeiros em Gaza, a cobertura foi feira por repórteres locais. Quando fomos mandados para o sul de Gaza, confinaram os repórteres num hospital, sem poder sair. Por que os israelenses mataram o romancista Ghassan Kanafani em 1972? E Majed Abu Sharar em 1981? E Shireen Abu Akleh, correspondente da al-Jazeera, em 2022? Porque não querem que falem sobre nós. Estamos assistindo a uma guerra contra a verdade. Esta também é uma luta sobre a narrativa desse país. Eles destroem bibliotecas e museus em Gaza para acabar com a memória palestina.
A Autoridade Nacional Palestina sofre acusações de corrupção e falta de legitimidade. Como ex-ministro, quais você considera serem os principais desafios do governo palestino?
Que corrupção? Se destinamos recursos a instituições em Jerusalém ou a refugiados no Líbano, dizem que não somos transparentes. Que falta de legitimidade? Como fazer eleições sem os votos de Jerusalém? Querem que sejamos democráticos, mas também que excluamos o Hamas, que é um partido político. O maior problema do governo palestino é a falta de vontade da comunidade internacional, que não força Israel a um acordo, é o fato de não termos um estado. Eu era ministro e por meses não tinha autorização para ir a Gaza! Como eu posso servir ao meu povo desse jeito? Em certo momento, o presidente Mahmoud Abbas foi pressionado a não destinar mais recursos a Gaza, ele se recusou e o acusaram de corrupção.
O Hamas tem lugar na política palestina?
Eu não decido pelos palestinos. O Hamas é um partido político. Se concorrer às eleições, não terá maioria, mas não pode ser excluído do processo democrático. Defendo um governo não partidário, que nasça de um acordo que inclua o Hamas, mas sem seus membros no governo. Nós, palestinos, temos que conversar entre nós mesmos e decidir como governar Gaza depois da guerra. As pessoas lá precisam de um governo, precisam viver.