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No México, mães negociam com traficantes para encontrar filhos desaparecidos

Grupos de familiares de vítimas do tráfico ignoram o Estado e pedem permissão ao crime organizado para desenterrar seus mortos

Polícia do México encontra 45 sacos com restos humanos Polícia do México encontra 45 sacos com restos humanos  - Foto: Ulises Ruiz / AFP

Ceci Flores e Delia Quiroa eram duas mulheres mexicanas que levavam uma vida normal até alguns anos, quando o crime organizado fez desaparecer vários de seus parentes.

Diante da inação das autoridades e com meios próprios, Flores começou a procurar os seus dois filhos; Quiroa, passou a buscar o corpo do irmão. Sem querer e com o passar dos anos, elas se tornaram ativistas de direitos humanos em um país com uma crise de desaparecidos que ultrapassa 110 mil pessoas e afeta milhares de famílias.

Diante do desespero e da ausência do Estado, muitas mães mexicanas optaram por pedir permissão ao narcotraficante local para desenterrar seus mortos.

— O que queremos é que respeitem nossas vidas e nos deixem procurar nossos parentes, que as pessoas não continuem desaparecendo e, finalmente, que os cartéis cheguem a um acordo de paz entre si — diz Quiroa.

O primeiro pedido assinado pelo coletivo Mães Buscadoras de Tamaulipas, ao qual Quiroa pertence, foi em 2021. O traficante permitiu que elas escavassem um campo de extermínio à beira-mar em La Bartolina, de onde retiraram 500 quilos de restos de ossos carbonizados.

“As famílias de Tamaulipas estão desesperadas porque as autoridades não buscam, identificam e entregam nossos parentes, por isso enviamos esta mensagem ao líder de Los Ciclones do Cartel do Golfo em Matamoros”, disse a primeira mensagem dirigida ao narcotraficante.
 

Ceci Flores e o grupo de busca de mães ao qual ela pertence fizeram o mesmo em Sonora e Sinaloa e a petição foi replicada por vários grupos do país.

“Peço aos chefes dos cartéis que nos dêem permissão para encontrar nossos desaparecidos. Não queremos justiça, queremos apenas encontrá-los e enterrá-los”, diz Flores em um vídeo que publicaram nas redes sociais.

Até agora, as mães apelaram a nove cartéis para deixá-las trabalhar. Entre os grupos criminosos estão o Cartel Jalisco Nova Geração, o Cartel Sinaloa, o Cartel Sonora, o Cartel Los Salazar, La Familia Michoacana, Los Caballeros Templarios e Los Zetas Velha Escola, entre outros.

Um ano depois, a proposta das mães chegou à conferência matinal do presidente Manuel Andrés López Obrador.

— O que você acha da trégua de paz alcançada pelas mães buscadoras? — perguntaram os jornalistas ao presidente.

López Obrador disse que saudava o fato de as mães terem chegado a uma trégua com os cartéis para acalmar o clima de violência que atravessa o país, mas alertou que o seu governo não pode garantir que não agirá contra aqueles que desrespeitam o lei.

— Tudo o que significa pedir paz e lutar para que não haja violência, temos que apoiar — disse.

A reação do presidente ocorreu após o Cartel do Nordeste (CDN) publicar um vídeo nas redes sociais em que vários integrantes com o rosto coberto e armados com fuzis e metralhadoras leves aceitam a trégua, segundo sua versão, não como sintoma de fraqueza, mas como uma forma de "conseguir o bem-estar no país".

Com esta mensagem, o CDN lançou o desafio ao governo federal sobre quais serão os "mecanismos legais para ter a certeza e segurança de que os acordos serão respeitados", diz o homem que lê o comunicado. Dias depois, as palavras de López Obrador deixaram a questão no ar.

— É bom que haja essa atitude das mães dos desaparecidos e também que aqueles que estão envolvidos no crime ouçam, embora não possamos garantir que não airemos contra aqueles que infringem a lei. Não pode haver impunidade — respondeu o presidente.

Enquanto isso, as mães acreditam que algumas medidas foram tomadas a seu favor.

— Fico feliz que eles nos escutem — diz Quiroa. — O que pedimos é que, quando forem mortos, sejam deixados em um local visível onde possamos encontrá-los. Em Ciudad Obregón, anteontem, deixaram alguns mortos caídos, por isso acreditamos que é uma resposta ao pedido que estamos fazendo.

Em 2021, em Tamaulipas, as mães pediram ao cartel que colocasse na fronteira uma faixa com sua resposta caso aceitassem a trégua. A mensagem chegou dias depois. Mas como negociar com um cartel? As mulheres afirmam que a comunicação costuma ser indireta por meio das redes sociais. Como quem joga uma garrafa no mar.

— Nós publicamos as declarações e os vídeos e a mídia divulga a mensagem — disse a porta-voz das mães de Tamaulipas. — Então esperamos.

Flores confirma que conseguiu se comunicar com eles.

— Recebi duas ligações em que me dizem que são dos cartéis e que o que estamos pedindo é justo e que vão tentar negociar — conta.

E assim, a cada ligação, a cada mensagem anônima, a esperança se renova para elas.

Ausência do Estado
Se há algo que essas duas mulheres compartilham, além da dor, é o perigo de fazer o que fazem. Ambos vivem longe de Sonora e Tamaulipas, lugar onde cresceram e de onde foram expulsas com ameaças de morte por quererem encontrar seus familiares.

Assim como elas, centenas de famílias fazem parte dos grupos de busca. A violência, a insegurança e a ausência do Estado em muitas áreas do México transformaram o país em uma enorme vala comum. Ambas apontam que a decisão de agir veio depois tentar pelas vias legais, sem sucesso, por causa da corrupção e da burocracia.

— Se as autoridades fizessem seu trabalho, não precisaríamos ser nós, mães, que constantemente arriscamos nossas vidas — denuncia Flores.

Em Tamaulipas a situação não é melhor.

— As estatísticas nos mostram que de 100% dos casos investigados pelos ministérios públicos, apenas 3% chegam a um tribunal e só 1% tem uma sentença. Imagina quando os responsáveis pelos nossos processos vão pagar... nunca — explica Quiroa, que é advogada de formação.

Ela acredita que seria muito mais eficaz que os mecanismos de justiça transicional fossem aplicados à crise de violência, desaparecimentos e terror que o México atravessa. Ou seja, uma série de mecanismos de acesso à verdade, justiça, reparação e não repetição, que são utilizados em países como Colômbia e Guatemala, após longos períodos de repressão ou níveis de violência de grande escala que levaram a uma violação maciça dos direitos humanos.

— É a única maneira de sair deste buraco. Aqui são necessários mecanismos extraordinários de justiça porque os problemas de insegurança e crimes de grande repercussão já superaram o governo há muito tempo.

A cada dia que passa, a família Quiroa afunda mais na tristeza. Embora siga em frente, o peso que ela carrega nas costas, como o de Ceci Flores e de tantas outras mães, torna-se insuportável.

— Encontrar meu irmão é algo emocional, precisamos saber o que aconteceu com ele, onde ele está.

Ceci perdeu seus dois filhos, Marco Antonio e Alejandro; o irmão de Delia, Roberto, desapareceu por se recusar a pagar uma taxa aos traficantes por seu restaurante. Ele tinha 29 anos.

— Se nós, mães, desaparecemos, desaparece a possibilidade de nossos filhos um dia voltarem para casa. Porque quando eles não estão mais, só quem os procura é a mãe — diz Flores. — Se eu tiver que ir ao inferno, eu irei, se eu tiver que falar diretamente com o traficante, eu falarei.

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