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Nova portaria do governo obriga médico a avisar polícia quando mulher solicitar aborto por estupro

Lei permite interromper gestação decorrente de estupro; para especialistas, exigências intimidam paciente

Protesto em favor do abortoProtesto em favor do aborto - Foto: Jung Yeen-Je/AFP

O Ministério da Saúde publicou nesta sexta-feira (28) uma portaria com novas regras para atendimento ao aborto nos casos previstos em lei. O texto obriga profissionais de saúde a avisarem a polícia quando atenderem pacientes que peçam para interromper uma gestação em razão de estupro.

Até então, essa notificação não constava de documentos da pasta, segundo especialistas ouvidos pela reportagem.

A portaria também estabelece uma série de medidas que devem ser cumpridas pelas equipes de saúde para que gestantes tenham acesso ao procedimento. Entre elas, a exigência de que os médicos informem à mulher a possibilidade de ver o feto em ultrassonografia –algo que alguns especialistas consideram esta uma maneira de demover a paciente.


O texto também determina que as pacientes assinem um termo de consentimento com uma lista de possíveis complicações do aborto.

Atualmente, o aborto é permitido no Brasil em três casos: gravidez decorrente de estupro, casos de risco à vida da mulher e fetos anencéfalos.

A portaria foi publicada no Diário Oficial da União desta sexta-feira (28). O texto é assinado pelo ministro interino da Saúde, o general Eduardo Pazuello e justifica a medida com a necessidade de garantir aos profissionais de saúde "segurança jurídica efetiva" para a realização do aborto.

Em nota, o ministério afirmou que, com a lei 13.718, de 2018, "o crime de estupro passou a ser apurado mediante ação penal pública incondicionada, ou seja, sem depender de prévia manifestação de qualquer pessoa para ser iniciada".

Dessa forma, segundo o órgão, as normas anteriores estavam em desacordo com a lei.

Ainda de acordo com a pasta, um decreto de 1941 caracteriza contravenção se funcionário ou médico deixarem de comunicar à autoridade competente a ocorrência de crime de ação penal pública que não depende de representação.

Especialistas, no entanto, veem em parte das mudanças uma tentativa de intimidar mulheres que buscam o acesso ao procedimento nos casos previstos em lei.

Para Debora Diniz, do Instituto Anis Bioética, a portaria "transforma a operação de um serviço de aborto legal em uma delegacia policial". "Ela cria uma série de barreiras e parte de uma clara ideologização da ciência, uma ciência seletiva, cuja única finalidade é amedontrar as mulheres que buscam o aborto."

Na prática, o texto torna obrigatória a notificação à autoridade policial "pelo médico, demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolheram a paciente dos casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro".

Diz ainda que profissionais devem preservar e entregar à polícia "possíveis evidências materiais do crime de estupro, tais como fragmentos de embrião ou feto com vistas à realização de confrontos genéticos que poderão levar à identificação do respectivo autor do crime".

Para o ginecologista e obstetra Jefferson Drezett, da Faculdade de Saúde Pública da USP e que atuou por décadas em serviços de aborto legal, embora prevista em lei, a medida pode afastar mulheres do serviço de saúde. "É um problema, porque se sou uma mulher e me sinto em risco, vou evitar procurar o serviço."

O texto traz ainda quatro fases para o que chama de procedimento de "justificação e autorização" do aborto nos casos previstos em lei. Parte das medidas já constavam de uma portaria da pasta de 2005 e outras foram atualizadas.

O texto mantém a necessidade que haja um relato circunstanciado do evento, o qual deve ser feito pela gestante a dois profissionais de saúde e documentado com os seguintes dados: local, dia e hora do fato; tipo e forma de violência; descrição do agressor e testemunhas, caso houver.

Em outra etapa, o médico que atender a gestante também deve emitir um parecer técnico, com dados de exames. São previstos mais documentos, como um "termo de aprovação do procedimento de interrupção da gravidez", o qual deve ser assinado por três pessoas da equipe de saúde, e um termo de responsabilidade, o qual deve ser assinado pela gestante ou representante legal.

As medidas já eram previstas em normas da pasta, mas há outras mudanças, como a assinatura de um termo de consentimento com uma lista de possíveis complicações decorrentes do aborto sem o contexto específico.

Em normas anteriores, o termo citava apenas que a mulher havia sido informada pela equipe. Agora, traz uma lista de complicações, como risco de sangramento intenso, danos ao útero e sepse.

"Foi colocado para as mulheres uma coisa injusta e desleal. Para quem tem até nove semanas ou menos de idade gestacional, por exemplo, o risco de um desfecho grave é de 0,1 caso a cada 100 mil. A maneira como foi colocado induz a acreditar que estou oferecendo uma coisa com risco elevadíssimo. Não estou dizendo que os riscos não existem, mas dependem de cada etapa", afirma Drezett.

Outra medida, a oferta para que a paciente veja o embrião ou feto em uma ultrassonagrafia e registre sua concordância em documentos divide quem acompanha o tema.

"Temos que nos perguntar: para que serve convidar uma mulher que foi estuprada a ver o feto? São tecnologias de poder vistas para intimidar uma mulher", diz Diniz, para quem o uso da tecnologia neste caso serve para maltratar a vítima.

Já para Drezzet, ao citar o termo "caso a gestante deseje" e a necessidade de concordância expressa, a medida pode trazer uma garantia: "O que está sendo colocado é que só vai ter acesso às imagens caso ela desejar. Mas a regra é não mostrar, porque isso funciona como um acréscimo de sofrimento".

A publicação da nova portaria ocorre poucos dias após a repercussão do caso de uma menina de dez anos que ficou grávida após recorrentes estupros sofridos desde os seis anos e abortou.

Mesmo com risco de morte, a criança teve dificuldades para obter acesso ao aborto no Espírito Santo, onde vivia. A interrupção da gravidez só ocorreu em Recife, sob xingamentos e protestos de grupos contrários.

Na época, o Ministério da Saúde evitou comentar sobre o caso. Atualmente, a secretaria de atenção primária à saúde é chefiada por Raphael Parente, conhecido por sua postura contra o aborto.

A reportagem questionou o ministério sobre a portaria, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem.

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