Guerra

Número de menores mortos em Gaza desde o início da guerra é maior que a soma dos últimos 23 anos

Mais de 2,7 mil crianças e adolescentes morreram no território palestinos desde 7 de outubro, quase mil a mais do que o total registrado a partir de 2000, início da série histórica

Crianças palestinas choram enquanto se protegem de bombardeios em um hospital em Rafah, no sul da Faixa de Gaza Crianças palestinas choram enquanto se protegem de bombardeios em um hospital em Rafah, no sul da Faixa de Gaza  - Foto: Mohammed Abed/AFP

Em 30 de setembro de 2000, Muhammad al-Durrah, 11 anos, foi pego no fogo cruzado entre palestinos e soldados israelenses em Gaza e morreu na hora. Sua morte foi a primeira de uma longa lista que o Centro Israelense de Informações sobre Direitos Humanos nos Territórios Ocupados B'Tselem começou a compilar naquele ano. Vinte e três anos se passaram e, depois de al-Durrah, outras 1.741 menores haviam perdido suas vidas de forma violenta na Faixa de Gaza até 6 de outubro. A partir do dia seguinte, quando a guerra entre Israel e Hamas teve início, o número cresceu exponencialmente. Ao menos 2.704 crianças e adolescentes morreram nas últimas três semanas em ataques aéreos, segundo dados do Ministério da Saúde de Gaza. Em 18 dias, o número total de mortos nos últimos 23 anos foi ultrapassado.

Pelo menos 2,2 milhões de pessoas, metade delas crianças, estão presas na Faixa de Gaza, que alguns chamam de a maior prisão a céu aberto do mundo: um território de 365 km² que não pode ser acessado ou deixado por terra, mar ou ar desde que Israel bloqueou todo o acesso a ela após o ataque terrorista de 7 de outubro. Quase não há mais água potável na região, a eletricidade, os alimentos e os medicamentos são escassos. Os caminhões que transportam ajuda humanitária são autorizados a passar aos poucos. Não há escassez de mísseis: até seis mil foram disparados pelo Exército israelense nos primeiros seis dias do cerco, matando 1.140 pessoas.

A escassez, o medo, a insegurança e a morte se tornaram companheiros permanentes de meninas como Dima Allamdani, de 16 anos, que na semana passada enterrou 13 membros de sua família.

— Vim procurar meu pai, minha mãe e meus irmãos no necrotério. Primeiro eles me disseram: venha ver sua mãe. Eles não me mostraram o rosto dela, mas eu a reconheci pelos pés — disse a adolescente, com o rosto machucado e sujo, às câmeras da Reuters. — Isso partiu meu coração; é um pesadelo.

A família de Allamdani foi uma das muitas que se mudaram para o sul da Faixa para evitar os bombardeios israelenses. Eles se estabeleceram em um abrigo temporário na cidade de Khan Younis, mas foram atingidos por um ataque maciço na noite de 17 de outubro. A menina, um de seus irmãos e dois primos mais novos foram os únicos sobreviventes.

Além dos mortos, pelo menos 5 mil outras crianças foram registradas como feridas e outras 800 estão desaparecidas, provavelmente porque foram deixadas sob os escombros dos prédios que desabaram, de acordo com as autoridades palestinas.

— Milhares de casas e dezenas de playgrounds, escolas, hospitais, igrejas e mesquitas foram danificados ou destruídos em Gaza — informa o Ministério da Saúde de Gaza, controlado pelo Hamas.

Este não é um problema novo. A Faixa de Gaza tem sido palco de incursões e ataques militares desde que passou das mãos dos israelenses para as dos palestinos em 1994, com a assinatura dos Acordos de Oslo. Todos os residentes são afetados pela violência, em maior ou menor grau. Como um idoso relembrando as vicissitudes de seu passado, os adolescentes que agora completam 17 anos podem afirmar que já sobreviveram a cinco conflitos armados. Suas vidas começaram em 2006, pouco antes do primeiro bloqueio israelense, e em 2007, com a ascensão do Hamas ao poder. Nesse período, eles passaram pela guerra de 2008-2009, que durou 23 dias; pela guerra de 2012, que durou oito dias; pela guerra de 2014, que durou 50 dias e foi a mais sangrenta até agora; pela guerra de 2021, que durou 11 dias; e pela guerra atual, que começou em 7 de outubro.

A falta de alimentos e água afeta mais severamente as crianças, especialmente aquelas que estão em seus primeiros mil dias de vida, o estágio mais importante do desenvolvimento. Mesmo antes da ofensiva israelense, 60% da população de Gaza precisava de assistência humanitária para sobreviver e o Programa Mundial de Alimentos da ONU registrou 1,84 milhão de pessoas em situação de insegurança alimentar. Além disso, 7,4% das crianças com idade entre 6 e 59 meses sofriam de alguma forma de desnutrição. De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), menos da metade da população infantil recebe uma dieta minimamente diversificada e cerca de 10% das crianças com menos de cinco anos são raquíticas.

Como as usinas de dessalinização não estão disponíveis devido à falta de combustível e aos supermercados vazios, muitos habitantes de Gaza acabam bebendo de qualquer lugar. Até mesmo do mar.

"A população está consumindo água salgada com mais de 3 mil miligramas por litro de teor de sal dos poços agrícolas. Isso representa um risco imediato para a saúde ao aumentar os níveis de hipertensão, especialmente em bebês com menos de seis meses, mulheres grávidas e pessoas com doenças renais", alerta o último relatório de situação do Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU (OCHA).

O uso de água subterrânea salina também aumenta o risco de diarreia e cólera. Os primeiros casos de catapora, sarna e diarreia, atribuídos à falta de saneamento e ao consumo de água de fontes inseguras, já foram detectados. "Espera-se que a incidência dessas doenças aumente, a menos que as instalações de água e saneamento recebam eletricidade ou combustível para voltar a funcionar", alertou a organização.

Efeitos a longo prazo
Diversos conflitos armados em todo o mundo resultaram em uma extensa documentação sobre os efeitos da violência nas crianças. Um dos mais recentes, com foco nas crianças de Gaza, foi publicado pela Save the Children em 2022 e afirma que quatro em cada cinco vivem com depressão, dor e medo. A violência contínua por mais de 15 anos fez com que oito em cada dez crianças relatassem estar sentindo angústia emocional e pesar, além de terem dificuldades com a lição de casa e com a socialização.

— Trabalhamos com muitas crianças que mostram sinais de ansiedade e depressão desde muito jovens — disse Jason Lee, diretor da Save the Children para os territórios palestinos, alertando que os casos continuarão a se multiplicar "até que o ciclo de violência em Gaza termine".

Um estudo da UNRWA realizado apenas nove meses após o conflito de 2021 constatou que, até então, pelo menos quatro em cada dez crianças ainda precisavam de intervenção psicossocial, as mesmas crianças que continuavam a sofrer de transtorno de estresse pós-traumático.

Os efeitos de longo prazo entre as crianças que vivem em contextos de guerra variam desde a negação ou supressão de emoções até tentativas de suicídio, de acordo com o relatório da Save the Children. O OCHA registrou que, entre 2020 e 2021, houve 44 casos de tentativa de suicídio em Gaza, em comparação com oito registrados em 2019.

— Para que as crianças comecem a se sentir seguras, elas precisam acreditar que há um futuro — diz Lee.

O assassinato de Muhammad al-Durrah, o menino que inaugurou a lista de crianças vítimas na Faixa, tornou-se viral em uma época em que não havia redes sociais porque foi gravado ao vivo na televisão francesa. Seu caso correu o mundo, o menino foi declarado mártir e a imagem dele abraçado ao pai enquanto tentava protegê-lo das balas, encurralado entre os dois lados na briga que lhe custou a vida, tornou-se um ícone da luta palestina. No entanto, do restante das mais de 4 mil crianças mortas em Gaza de 2000 até quarta-feira, apenas um número ou um nome permanece nos relatórios da ONU ou de algumas instituições de caridade. E a lista continua a crescer.

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