Nunca teve Covid? Estudo responde por que cerca de 20% das pessoas são assintomáticas; entenda
Trabalho identificou uma variante genética associada a uma resposta mais rápida do sistema imunológico para o coronavírus
Desde o início da pandemia da Covid-19, um aspecto da doença tem intrigado cientistas: por que algumas pessoas, mesmo expostas, não se contaminam com o vírus, ou ao menos não aparentam ter sido infectadas? O questionamento não é à toa, estimativas apontam que ao menos 20% das pessoas são assintomáticas e é comum conhecer alguém que, nesses mais de três anos, nunca relatou uma queixa associada ao diagnóstico.
Agora, um novo estudo publicado na revista científica Nature traz pela primeira vez uma resposta consistente. No trabalho, pesquisadores das Universidades da Carolina do Norte e da Califórnia, nos Estados Unidos, e da Universidade de La Trobe, na Austrália, investigaram a genética de cerca de 1.428 pessoas que tiveram um teste positivo para a Covid-19 e haviam doado sangue anos antes da pandemia.
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Eles focaram a análise num grupo de genes chamados de antígenos leucocitários humanos (HLA), que codificam proteínas lidas pelo sistema imunológico para identificar o que são agentes externos nocivos, como vírus e bactérias, e desenvolver defesas contra eles. Por isso, exercem um papel essencial na resposta a uma infecção.
Os pesquisadores observaram que indivíduos com uma variante genética chamada HLA-B*15:01 tiveram o dobro de probabilidade de desenvolverem um quadro sem sintomas ao serem contaminados pelo Sars-CoV-2. A mutação é relativamente comum, prevalente em cerca de 10% da população. Além disso, identificaram o mecanismo que protege essas pessoas.
Os HLA produzem pedaços do vírus para que o sistema imune os reconheça e dê início à produção de anticorpos e células de defesa. No caso dos indivíduos com a variante HLA-B*15:01, o estudo mostrou que, mesmo antes da Covid-19 se disseminar pelo planeta, eles já tinham produzido células de memória T para uma parte específica do vírus causador da doença.
"O sistema imunológico deles poderia reagir tão rápido e poderosamente que o vírus foi eliminado antes de causar qualquer sintoma. É como ter um exército que já sabe o que procurar e pode dizer pelo uniforme que esses são os bandidos”, explica Jill Hollenbach, uma das principais autoras do estudo e professora da Universidade da Califórnia, em comunicado. Mas como isso era possível?
Os indivíduos nunca haviam tido contato com o novo coronavírus, já que o sangue foi coletado antes da pandemia. Só que foram expostos a outros coronavírus antes, que já circulavam no passado causando resfriados comuns. No geral, o contato com esses vírus antigos não gera proteção para o Sars-CoV-2. Porém, graças à variante genética, a exposição induziu uma espécie de proteção cruzada.
Isso porque, nessas pessoas, a infecção com algum dos coronavírus sazonais fez com que o sistema imune passasse a reconhecer uma parte específica deles que o novo coronavírus também tem em comum, chamada de NQK-Q8. Com isso, ao se contaminar com a Covid-19, o organismo imediatamente o classificou como um invasor e começou a combatê-lo.
"Indivíduos que carregam especificamente o HLA-B*15:01 podem matar rapidamente as células infectadas pelo Sars-CoV-2 devido a respostas imunológicas de reação cruzada. Então, mesmo que os bandidos mudassem o uniforme, o exército ainda seria capaz de identificá-los por suas botas ou talvez por uma tatuagem em seus braços. É assim que nossa memória imunológica trabalha para nos manter saudáveis”, explica um dos principais autores do estudo, Danillo Augusto, em comunicado.
Augusto é brasileiro e atua como professor assistente da Universidade da Carolina do Norte. No Brasil, faz parte do programa de pós-graduação em Genética da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba.
Para Salmo Raskin, doutor em Genética pela UFPR e diretor do Centro de Aconselhamento e Laboratório Genetika, o trabalho tem uma grande relevância para a Covid-19, possibilitando novos alvos no desenvolvimento de medicamentos, por exemplo.
"Eles demonstraram um pedaço do vírus muito importante para ele ser reconhecido, que é mais conservado e presente na maioria dos coronavírus. Isso foi suficiente para que desse uma proteção não só para o coronavírus a que o indivíduo foi exposto, como para outros, como o Sars-CoV-2. Sabemos então que esse pedacinho é muito importante, e agora pode ser alvo de novas vacinas, terapias, tratamentos", afirma.
Ele acredita ainda que o trabalho é “uma prova incontestável do papel dos genes na interação que ocorre durante uma infecção”. No futuro, acredita que isso pode levar ao mapeamento de pessoas mais suscetíveis por meio de testes genéticos.
— Hoje, temos tecnologia para identificar que tipo de variação nesse material genético pode conferir proteção ou vulnerabilidade a contaminações. E esse conhecimento serve não apenas para Covid-19, como para outras doenças. No futuro breve, as pessoas podem passar por testes genéticos para saberem se têm maior ou menor vulnerabilidade a uma infecção. Não quer dizer que uma pessoa com essa variante não precisaria se vacinar, por exemplo, mas, por outro lado, ressalta o maior cuidado com aqueles que são mais vulneráveis — explica o ex-presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica.