CARNAVAL 2021

Ano sem a folia do Carnaval deixa saudades da alegria e da irreverência

Passar pelos próximos dias com essa ausência será um grande desafio para os foliões

Casal Maria Claudia Cabral de Melo, 65, e Felipe José Cabral de Melo, 65, desfila no Bloco da Saudade há três décadasCasal Maria Claudia Cabral de Melo, 65, e Felipe José Cabral de Melo, 65, desfila no Bloco da Saudade há três décadas - Foto: Arthur Mota/Folha de Pernambuco

Chegou o tão aguardado dia. O Sábado de Zé Pereira. Nas primeiras horas da manhã os foliões começam a deixar suas casas e seguem ansiosamente ao encontro da folia. Maracatus, troças, caboclinhos tomam conta das ruas, becos e avenidas. No bairro de São José, Centro do Recife, os fogos anunciam a saída do maior bloco do mundo, o Galo da Madrugada. Em Olinda, a multidão enche de cores e alegria as tão famosas ladeiras.

Poderia ser a descrição de mais um dia do Carnaval 2021 para guardar na memória, mas neste ano os amantes do fervo não terão a chance nem mesmo de esperar a quarta-feira ingrata para os contrariar. Devido à pandemia do coronavírus, o reinado de Momo chegou ao fim antes mesmo de começar, e a saudade já toma conta dos corações dos brincantes.

Moradores de Olinda, os amigos Leticia Brito e Rennan Carvalho, ambos de 30 anos, carregam na memória lembranças do Carnaval no Recife e na cidade Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade desde a infância. Apesar de não se conhecerem quando crianças, eles têm em comum o amor pelo frevo desde aquela época. “Lembro que desde os 7, 8 anos eu já acompanhava o Galo da Madrugada pela televisão e com o tempo passei a conhecer e curtir muito o carnaval de rua”, comenta o doutorando em administração.



Apesar de ter sido criada em um lar evangélico, a empreendedora conta que a relação dela com o Carnaval sempre foi tão grande que quando chegava o período da festa ela saía da igreja para aproveitar a folia. “Mas há alguns anos deixou de ser assim e passei a viver o Carnaval de setembro até a Quarta-Feira de Cinzas”, afirma.

O envolvimento deles com a festa é tão grande que meses antes dos dias oficiais de festa já começam a planejar as roupas que vão usar durante o reinado de Momo. “Não é simplesmente sair na rua e curtir o frevo. Tem toda essa parte de se vestir. Essa semana a gente estaria na agonia de costureira, comprando os últimos itens das roupas, que são simples, mas com muito brilho. Às vezes, pouca roupa ou quase nenhuma”, conta Leticia sorrindo, acrescentando que Carnaval também é um momento político no qual os foliões acabam levantando suas bandeiras, ideologias e crenças. “São dias que estamos mais livres para nos vestirmos do jeito que queremos”, fala a empreendedora.

Neste ano, por conta da pandemia, eles não poderão viver a emoção de subir as ladeiras de Olinda ao som das orquestras de frevo, nem ver o Homem da Meia Noite entregando as chaves da cidade à Troça Carnavalesca Mista Cariri Olindense na abertura simbólica da festa. No entanto, cada um tentará celebrar a data à sua maneira. “Tenho muitas roupas de carnavais passados e estava falando com alguns amigos que mesmo estando em casa deveríamos vestir algo, ouvir as músicas de Carnaval para pelo menos sentir um gostinho”, afirma Leticia.

Rennan Carvalho e Leticia Brito pensam nas fantasias meses antes do CarnavalOs amigos Rennan Carvalho e Leticia Brito pensam nas fantasias meses antes do Carnaval


Apesar do saudosismo, eles ressaltam a importância de cada um fazer a sua parte e respeitar o isolamento social em tempos de pandemia, mas confessam que a expectativa para 2022 está a mil. “Para quem vive o Carnaval intensamente, este momento é muito esperado. Vamos torcer para que possamos fazer uma festa linda no ano que vem”, acrescenta o doutorando.

O amor da secretária Aurélia Godoy de Oliveira, 38, pelo Carnaval também vem desde a infância. Ela conta que quando tinha apenas cinco anos passou a desfilar na escola de samba da avó, a Eles do Morro, como passista mirim. “Os ensaios aconteciam no quintal da casa dela, que era enorme, no Córrego do Abacaxi. No Sábado de Zé Pereira, a gente desfilava com as escolas de menor porte”, recorda.

Foi em 1992 que Aurélia estreou na Gigantes do Samba, ano em que a escola comemorou cinco décadas de existência. Em agosto de 1997, depois de participar de uma apresentação em Caruaru, o coordenador da bateria a convidou para ser a rainha da ala. Em 1998 aconteceu sua estreia. Foram dez anos seguidos reinando até que alguns integrantes da escola resolveram trocar a majestade. “Em 2009 fui para a ala das baianas, mas no Carnaval do ano passado voltei a ser rainha de bateria”, comenta.

Aurélia conta que nunca imaginou vivenciar o cancelamento do Carnaval. No começo da pandemia a esperança era que o isolamento social fosse breve e as coisas voltassem logo ao normal. “Mas à medida que os números foram aumentando comecei a trabalhar dentro de mim que não teríamos a festa esse ano e quando o São João foi suspenso, que é tão tradicional e importante quanto o Carnaval, a certeza que não teríamos desfile em 2021 ganhou ainda mais força”, confessa. Ainda assim, a rainha de bateria chegou a comprar alguns materiais que seriam usados na confecção de algumas roupas para ela se apresentar.

Apesar da tristeza por não poder desfilar neste ano, Aurélia se apega à esperança de que em 2022 o Carnaval possa voltar a acontecer graças ao surgimento da vacina contra o coronavírus. No entanto, ela ressalta que o momento é de prevenção. “A gente tem que se cuidar e cuidar dos nossos. Se colocarmos nossos componentes em risco, quando a pandemia passar podemos não ter algumas pessoas conosco. O momento é triste, diferente, fica um vazio, mas é necessário mantermos o distanciamento. Carnaval é uma festa de povão, de aglomeração, mas precisamos pensar em saúde e vidas antes de tudo”, destaca.

Aurélia Godoy de Oliveira, 38, é rainha de bateria da Escola Gigantes do SambaAurélia Godoy de Oliveira, 38, é rainha de bateria da Escola Gigantes do Samba



Depois de três décadas desfilando no Bloco da Saudade, o casal Maria Claudia Cabral de Melo, 65, e Felipe José Cabral de Melo, 65, não sentirá o prazer de entoar os frevos que tanto emocionam as mais diferentes gerações. A advogada lembra de sempre ter frequentado o Carnaval de clube, junto com os pais. “Naquela época, entre as décadas de 1960 e 1970, as brincadeiras de rua, como troças, faziam parte da festa, mas não eram tão características”, comenta. Foi em 1981, em uma das idas para Olinda, que eles conheceram o Bloco da Saudade e foi amor à primeira vista. “Levamos quase uma década atrás do bloco sem participar fantasiados. Felipe tinha vergonha, não gostava muito, mas acompanhava e se acostumou. Ele sempre ficava perto da orquestra. Em 1990, decidi sair fantasiada e no ano seguinte ele veio junto”, lembra.

Ela ressalta que o bloco passa para todo mundo a sensação de alegria, pois o compromisso dos integrantes é com a brincadeira, a diversão, a tradição. “O envolvimento e a paixão são tão grandes que já saí no bloco de pé quebrado, com gesso”, lembra Maria Claudia sorrindo. Neste ano, eles passaram o período do Carnaval isolados. Na última sexta-feira, eles viajaram para uma casa de praia, onde ficarão alguns dias. “Essa pandemia é muito séria, mas se podemos adiar a festa em detrimento de algo muito mais forte, que é a vida, devemos ter consciência a fazer a nossa parte. Sei que o Carnaval é muito importante. Para algumas pessoas é questão de sobrevivência, pois dependem dele financeiramente para sobreviver. A ausência da festa vai deixar uma lacuna, mas no futuro teremos os registros de que tudo valeu a pena, quando a gente botar o bloco na rua de novo”, pondera a advogada.

Galo da Madrugada
Pela primeira vez desde que foi fundado, em 1978, o Galo da Madrugada não vai reinar nas ruas do Recife. A ausência de galo gigante na ponte Duarte Coelho deixou um vazio no coração dos foliões. A alegoria não foi montada em 2021, deixando o cenário igual ao de um dia comum, devido ao cancelamento da festa. O presidente do bloco, Rômulo Menezes, lembra com carinho do surgimento. “A gente tem o Galo da Madrugada como um filho, como uma pessoa que nasceu nas nossas mãos. Quando fundamos o bloco não foi pensando com esse objetivo de que ele ganharia essa proporção que tem hoje. Foi feito como uma brincadeira para resgatar o Carnaval de rua, o frevo”, afirma.

Ele lamenta o fato deste ano o maior bloco do mundo não ganhar as ruas da capital pernambucana. “A gente está numa situação totalmente imprevisível, estranha e triste de não ter o desfile do Galo da Madrugada. É um acontecimento inédito e infelizmente temos que passar por isso e fica um sentimento muito grande de perda, impotência, de que apesar desse mundo tão evoluído que a gente tem tecnologicamente, um simples vírus foi capaz de praticamente paralisar o mundo inteiro. É um sentimento muito ruim não só do ponto de vista cultural, mas do ponto de vista financeiro. Eu espero que os foliões saibam vencer essa etapa e em 2022 nós vamos ter, se Deus quiser, um Carnaval que vai superar tudo que já aconteceu até agora”, comenta.

Aprendizados
O antropólogo e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Hugo Menezes, ressalta que o evento festivo não vai ocorrer, mas o Carnaval vai. Ele explica que o momento cíclico de renovação não é só uma festa, é também um ritual que tem muito a ver com o calendário cristão e das religiões de matrizes africanas. “Não é à toa que a gente brinca dizendo que o ano só começa depois do Carnaval. É um momento muito especial no sentido simbólico, religioso e cultural na nossa sociedade. O Carnaval é muito importante e o que não vai haver na verdade é o evento festivo, a festa oficial patrocinada pelo Estado, mas duvido muito que as pessoas não produzam seus próprios carnavais em suas casas, com seus núcleos familiares. Vão colocar suas músicas de Carnaval, ocupar as redes sociais com fotos, usar as lives. De alguma forma esse momento ritualístico vai acontecer, o evento é que ficou prejudicado”, avalia.

O antropólogo afirma que os impactos do cancelamento da festa são gigantescos e de muitas ordens. “Para nós, aqui em Pernambuco, é a interrupção de um momento muito peculiar de virada e renovação cíclica, de uma catarse social mesmo. Atrapalha a dimensão econômica, mas atrapalha também a simbólica, ritualística de poder fazer uma autocrítica social por meio das fantasias, da piada, da jocosidade que o Carnaval permite. E também a gente perde na dimensão social. Escolas de samba, agremiações de frevo, caboclinho, maracatus, ursos, bois, troças, clubes são grandes espaços de sociabilidade, reúnem as pessoas da periferia, as pessoas que estão lá se relacionando em uma grande diversidade na sua amplitude, negros, pobres, LGBTQIA+ que estão misturadas para promoção de um brinquedo popular que se realiza no Carnaval”, comenta.

Na avaliação de Hugo Menezes, um momento como esse de excepcionalidade que estamos passando não se cura tão facilmente. “Certamente, a gente vai levar muito para 2022. Em todas as dimensões do social será levado algum traço, algum resquício desse momento, que não vai passar em branco. A gente aprendeu a fazer muita coisa pela virtualidade, aprendeu a atingir mais pessoas a partir das redes sociais para evocar momentos festivos, vamos ter isso em 2022 também”, diz. Ele acredita que os próximos carnavais serão uma mescla do virtual com o real. “No próximo ano, teremos uma festa carnavalesca que ocupará essas duas dimensões que não estão separadas. A separação entre o real e o virtual não existe, é apenas vocabular, na prática essas duas dimensões estão muito imbricadas. No carnaval de 2022 teremos um Carnaval que estará na internet e estará no real”, acrescenta.

O especialista destaca ainda que o poder público deverá amparar melhor a festa para que ela possa ocorrer sem danos. “Pernambuco tem muita cultura, muito repertório popular. Só que essas brincadeiras precisam de dinheiro para estar na rua, os seus fazedores precisam de amparo para poder colocar seus blocos, suas troças, seus maracatus na rua. Então, para 2022 a gente vai precisar, para que ele ocorra de maneira efetiva, de um olhar especial para essa multiculturalidade fazendo com que a dimensão simbólica seja amparada pela dimensão financeira e que esses blocos, troças, clubes, maracatus possam ir para a rua amparadas”, diz.

Antropólogo Hugo MenezesAntropólogo Hugo Menezes

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