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O eclipse solar que terminou uma guerra e abalou os deuses para sempre

Tales de Mileto, considerado o primeiro cientista do mundo, previu eclipse em 585 a.C., interrompendo guerra entre povos inimigos

Batalha do Hális, também conhecida como Batalha do EclipseBatalha do Hális, também conhecida como Batalha do Eclipse - Foto: Reprodução/X

Na primavera de 585 a.C. na costa leste do Mediterrâneo, a Lua surgiu do nada para ocultar completamente o Sol, transformando o dia em noite. Naquela época, os eclipses solares estavam envoltos em incertezas assustadoras.

Dizia-se que um filósofo grego havia previsto o desaparecimento do sol. Seu nome era Tales de Mileto. Ele vivia na Anatólia — território hoje da Turquia, mas na época uma região que foi o berço da Grécia Antiga — e diziam que ele adquirira seu poder incomum ao renegar os deuses.

O eclipse teve impacto político imediato. Os reinos dos Medos e Lídios travavam uma guerra brutal há anos. O eclipse foi interpretado como um mau presságio, e os exércitos rapidamente baixaram as armas. Os termos da paz incluíam o casamento da filha do rei da Lídia com o filho do rei de Medos.

As ideias de Tales tiveram um impacto duradouro, com sua reputação crescendo ao longo dos séculos. Heródoto contou sobre sua previsão. Aristóteles disse que Tales era a primeira pessoa a compreender a natureza. Ele foi reconhecido na Grécia clássica como o principal dos “sete sábios”.

Hoje, o episódio de 585 a.C. ilustra o temor dos antigos com o desaparecimento do Sol e sua grande surpresa ao perceber que um filósofo conseguiu prever isso com antecipação.

Marca também uma virada na visão do mundo sobre o fenômeno meteorológico. Por séculos, os eclipses solares foram temidos como presságios de calamidade. Reis tremiam. Mas há cerca de 2.600 anos, Tales liderou uma investida filosófica que substituiu a superstição pela previsão racional de eclipses.

Hoje, os astrônomos podem determinar com precisão até de segundos quando o Sol desaparecerá nesta segunda-feira em toda a América do Norte. Se as condições climáticas permitirem, será o evento astronômico mais visto na história americana, surpreendendo milhões de observadores do céu.

"Em todos os lugares que você olha, dos tempos modernos aos mais antigos, todos queriam previsões sobre o que os céus reservariam" disse Mathieu Ossendrijver, um estudioso de civilizações com escrita cuneiforme da Universidade Livre de Berlim.

Ele disse que os reis babilônicos “ficavam apavorados com eclipses”. Em resposta, os governantes escaneavam o céu em esforços para antecipar maus presságios, aplacar os deuses e “fortalecer sua legitimidade”.

Tales inaugurou uma visão racional sobre o tema. Ele é frequentemente considerado o primeiro cientista do mundo — o fundador de uma nova maneira radical de pensar.

Patricia F. O’Grady, em seu livro de 2002 sobre o filósofo grego, chamou Tales de “brilhante”. Ela descreveu seu grande feito: perceber que o mundo atribulado da experiência humana não resulta dos caprichos dos deuses, mas da “natureza em si”, iniciando a busca da civilização por seus segredos.

Muito antes de Tales, houve alguns episódios que indicam a previsão bem-sucedida de eclipses. Especialistas modernos dizem que Stonehenge — um dos locais pré-históricos mais famosos do mundo, cuja construção começou há cerca de 5 mil anos — pode ter sido capaz de alertar sobre eclipses lunares e solares.

Embora os antigos chineses e maias tenham registrado as datas dos eclipses, poucas culturas antigas aprenderam a prever os momentos em que o Sol seria completamente ofuscado pela Lua.

A primeira evidência clara de sucesso vem da Babilônia — um império da antiga Mesopotâmia onde astrônomos da corte faziam observações noturnas da Lua e dos planetas, geralmente os relacionando a deuses, magia, astrologia e misticismo a respeito do significado dos números.

A partir de cerca de 750 a.C., tábuas de argila babilônicas registram relatos de eclipses. Por meio de séculos de contagens deste fenômeno meteorológico, os babilônios foram capazes de discernir padrões de ciclos celestes e as datas prováveis de eclipses. Funcionários da corte podiam então alertar sobre o desagrado divino e tentar evitar os castigos, como a queda de um rei.

A medida mais extrema era empregar um bode expiatório. O rei substituto realizava todos os ritos de passagem usuais — incluindo os do casamento. O rei e a rainha substitutos eram então sacrificados aos deuses, com o verdadeiro rei tendo sido escondido até que o perigo passasse.

Inicialmente, os babilônios concentraram-se em registrar e prever eclipses da Lua, não do Sol. Os diferentes tamanhos das sombras dos eclipses permitiam que observassem um maior número de eclipses lunares.

A sombra da Terra é tão grande que, durante um eclipse lunar, bloqueia a luz solar de uma imensa região do espaço exterior, tornando o desaparecimento e o reaparecimento da Lua visíveis para todos no lado noturno do planeta. A diferença de tamanho é revertida em um eclipse solar. A sombra relativamente pequena da Lua torna a observação da totalidade — o completo desaparecimento do Sol — bastante limitada em alcance geográfico.

Nesta segunda-feira, porém, será possível ver o eclipse solar em sua totalidade numa faixa de terra que poderá chegar a quase 200 quilômetros.

Diante dos recursos disponíveis e da geometria espacial mais favorável, os babilônios se concentraram em observar a Lua. E acabaram percebendo que os eclipses lunares tendem a se repetir a cada 6.585 dias — ou, aproximadamente, a cada 18 anos.

"Eles podiam prevê-los (os eclipses da Lua) muito bem", disse John M. Steele, historiador das ciências antigas da Universidade Brown.

Este foi o mundo no qual Tales nasceu. Ele cresceu em Mileto, uma cidade grega na costa oeste da Anatólia. Era uma potência marítima. As frotas da cidade estabeleceram amplas rotas comerciais e um grande número de colônias que pagavam tributos, tornando Mileto rica e uma estrela da civilização grega antes de Atenas se destacar.

Dizia-se que Tales vinha de uma das famílias distintas de Mileto, que havia viajado ao Egito e possivelmente à Babilônia, e que estudara as estrelas. Platão contou como Tales certa vez caiu em um poço enquanto examinava o céu noturno. Uma criada, ele relatou, zombou do pensador por ele estar tão ansioso para conhecer os céus que ignorava o que estava aos seus pés.

Foi Heródoto quem, em "Histórias", contou sobre a previsão do eclipse solar feita por Tales, que pôs fim à guerra entre Lídia e Medos. Ele disse que o antigo filósofo havia antecipado a data que o Sol seria completamente encoberto, mas previu apenas o ano em que isso ocorreria – ou seja, muito distante da precisão que os astrônomos têm hoje.

No entanto, especialistas modernos, a partir de 1864, lançaram dúvidas sobre a autoria da previsão. Muitos viram-na como apócrifa. Em 1957, Otto Neugebauer, um historiador da ciência, a chamou de "muito duvidosa".

Nos últimos anos, a reivindicação recebeu novo apoio. As atualizações baseiam-se no conhecimento dos tipos de ciclos observacionais nos quais a Babilônia foi pioneira. Os padrões são vistos como permitindo que Tales fizesse previsões sobre eclipses solares que, se não tinham precisão de 100%, no entanto, ter sucesso de tempos em tempos. Se Stonehenge pode ocasionalmente acertar, por que não Tales?

Mark Littmann, um astrônomo, e Fred Espenak, um astrofísico aposentado da Nasa, especializado em eclipses, argumentam em seu livro “Totality” ("Totalidade", numa tradução livre) que a data do eclipse que ocorreu durante a guerra era relativamente fácil de prever, mas não sua localização exata. Como resultado, eles escrevem, Tales "poderia ter alertado sobre a possibilidade de um eclipse solar".

Leo Dubal, um físico suíço aposentado que estuda artefatos do passado antigo e recentemente escreveu sobre Tales, concordou. O filósofo grego poderia ter conhecido a data com grande certeza, enquanto estava incerto sobre os lugares onde o eclipse poderia ser visível, como nas linhas de frente da guerra.

Em uma entrevista recente, Dubal argumentou que gerações de historiadores confundiram o palpite do filósofo grego com a precisão de uma previsão moderna. Ele acredita que Tales acertou, e explica: "Ele teve sorte", disse, chamando tal coincidência de parte regular do processo de descoberta na investigação científica.

Ao longo dos séculos, os astrônomos gregos aprenderam mais sobre os ciclos babilônicos e usaram esse conhecimento como base para avançar em seu próprio trabalho. O que não era corriqueiro nos dias de Tales tornou-se mais confiável — incluindo o conhecimento prévio de eclipses solares.

O mecanismo de Anticítera, um dispositivo mecânico incrivelmente complexo, é um testemunho do progresso grego. Foi feito quatro séculos após Tales, no segundo século a.C., e foi encontrado em uma ilha grega em 1900. Suas dezenas de engrenagens e mostradores permitiam prever muitos eventos cósmicos, incluindo as datas de eclipses solares — embora não, como de costume, as localizações exatas nas quais os terrestres poderiam ver esse fenômeno em sua totalidade.

Durante séculos, mesmo até o Renascimento, os astrônomos continuaram aprimorando suas previsões de eclipse com base no que os babilônios haviam descoberto. O ciclo de 18 anos, disse Steele da Universidade Brown, "tinha uma história realmente longa porque funcionava".

Então veio uma revolução. Em 1543, Nicolau Copérnico colocou o Sol – e não a Terra - no centro dos movimentos planetários. Sua descoberta na geometria cósmica levou a estudos detalhados da mecânica dos eclipses.

E Isaac Newton: o gênio imponente que em 1687 desvendou o universo com sua lei da atração gravitacional. Sua descoberta tornou possível prever os caminhos exatos não apenas de cometas e planetas, mas também do Sol, da Lua e da Terra. Como resultado, as previsões de eclipses aumentaram em precisão.

Um grande amigo de Newton, Edmond Halley, que deu até nome a um cometa, colocou essa nova ciência em exibição pública. Em 1714, ele publicou um mapa mostrando o caminho previsto de um eclipse solar através da Inglaterra no ano seguinte.

Halley pediu aos observadores que determinassem o alcance real da totalidade. Os estudiosos chamam isso de primeira ampla pesquisa de um eclipse solar na história. Em precisão, suas previsões superaram as do astrônomo real, que aconselhava a monarquia britânica em assuntos astronômicos.

Os especialistas de hoje, utilizando as leis de Newton e a capacidade de cálculo de supercomputadores, podem prever os movimentos das estrelas para milhões de anos no futuro.

Mas por mais paradoxal que seja, há uma dificuldade maior para fazer previsões para movimentos celestes próximos à Terra para períodos tão longo. Isso ocorre porque a Terra, a Lua e o Sol estão em proximidade relativa e, portanto, exercem puxões gravitacionais comparativamente fortes um sobre o outro, que mudam sutilmente em força a longuíssimo prazo, alterando ligeiramente as trajetórias e posições planetárias.

Apesar de tais complicações, "é possível prever datas de eclipses mais de 10.000 anos no futuro", disse Espenak, ex-especialista da Nasa.

Ele criou as páginas na internet da agência espacial que listam os eclipses solares futuros — incluindo alguns que só vão ocorrer daqui a quase quatro milênios.

Portanto, se você está entusiasmado com o eclipse solar total desta segunda-feira, talvez deva considerar o que está reservado para quem estiver vivendo no que hoje chamamos de Madagascar em 12 de agosto de 5814.

De acordo com Espenak, nessa data ocorrerá o fenômeno de o dia se transformar em noite e depois voltar a ser dia — um espetáculo da natureza, não de deuses malevolentes. Talvez valha a pena um momento de contemplação porque ainda no futuro vai representar mais um testemunho da sabedoria de Tales.

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