O Festival de Gramado resgatou lembranças da minha infância e juventude
Na maioria das vezes, diante do meu cotidiano, não costumo crer, nem muito menos aceitar, que algumas questões tão particulares se ponham escancaradas para uma percepção púbica. Um misto de reserva, comedimento e timidez, parece-me ditar a esse respeito, de como agir sobre os limites de exposição. Essa espécie de autoanálise faz para mim todo sentido, na intenção de que regras próprias se revelem adequadas às circunstâncias de acatar ou não qualquer opinião. Isso posto, ainda há o princípio da ética para se levar em consideração.
Assim, apesar dos meus mais discretos esforços de equilibrio, há pontos fora da curva que merecem o devido destaque. Isso porque é bom lembrar que eventuais sintomas de introspecção, por mais reservados que sejam, podem contribuir para algum mínimo interesse público. Aí, certamente, valerá à pena se manifestar.
Frequento o Festival de Gramado há muitos anos. Das 51 edições, tenho no meu "passaporte cultural" exatos 27 "carimbos de acesso" amplo ao evento. E, nesse tempo todo, entre "festivaleiro adotado" e "gaúcho circunstanciado", nunca me expus para sequer comentar sobre o que achei da programação e dos filmes exibidos. No geral, sempre procurei me manter com a devida discrição cautelar.
Mas, é preciso assumir em alguma ocasião o ato de se manifestar pela primeira vez. E quando isso acontece, com as doses de um saudosismo agregador, o gesto parece soar bem melhor. Assim, aconteceu que, na edição que se encerrou, no sábado 19/08, algumas exibições me tocaram bastante. E, por conta dessa situação, senti-me à vontade para trazer ao público, relatos que dizem respeito à minha vida privada, particularmente, da infância e juventude. Foram três momentos distintos numa única semana de Festival. Um fato inédito para mim, de tal sorte que resolvi expô-lo.
O primeiro registro que aqui destaco, deu-se na abertura do evento e com um documentário pernambucano, dirigido pelo laureado diretor Kleber Mendonça Filho. Nessa sua nova obra, resgatei valores perdidos da minha infância, de uma vinculação com o cinema, iniciada na sala do velho Atlântico do Pina, hoje Teatro Barreto Junior (ainda bem). Aconteceu que, no documentário "Retratos Fantasmas", uma das intenções de Kleber em recuperar a memória dos tradicionais cinemas do Recife, trouxe-me à flor da pele lembranças saudosistas. Revivi uma infância que me parecia longínqua, na qual meu pai me levou ao Trianon pela primeira vez, sala que me parecia um templo. E ainda com meu pai, a lembrança do seu tempo de portuário, que vez por outra visitava às salas do velho ed. Alfredo Fernandes, onde por muito tempo, instalaram-se as "majors", que distribuiam os filmes de Hollywood. Nem imaginava que, na minha maturidade, viesse a me envolver com o cinema.
Outra passagem que pude extrair das imagens presentes no Festival de Gramado foi justamente aquelas que deram o brilho ao vitorioso filme do diretor Silvio Guidane, sobre o eterno Mussum. Sou - e não nego meu papel de fã - um filho da geração de "Os Trapalhões". Fui assíduo das filas intermináveis do São Luiz, nos dias de estreia de lançamentos. Vale dizer que, no sucesso do quarteto, o humor plural (até no gosto pelos) de Mussum, justo aquele que veio de uma outra arte (a de músico sambista), fazia-me ainda mais uma criança engajada com a trupe. Felicidade era assistir a "Os Trapalhões" no domingo e aos filmes, nas férias de janeiro e julho.
O registro final dessa minha passagem por Gramado, levou-me mais à frente, em termos de tempo. Nessa minha imersão nos filmes exibidos, a surpresa da homenagem, também em forma de documentário, a quem julgo como um dos maiores escritores brasileiros. Refiro-me ao baita cronista chamado Luís Fernando Veríssimo. Este injustiçado ausente da "imortalidade" da Academia, foi presente na minha vida de jovem e adulto. Fui fiel leitor das crônicas em todos veículos de difusão com os quais ele exerceu seu talento de escritor, naquilo que, particularmente, destaco como um "neorrealismo de humor inteligente e ironia fina". Do impagável personagem "O Analista de Bagé", passando pela "Velhinha de Taubaté" chegando aos seus textos sobre futebol (quase sempre, em nome da sua paixão colorada), Veríssimo fez parte da minha formação. Talvez até deste aprendiz de escritor, que aqui se atreve no digitar daquilo que - bem ou mal - pensa.
A propósito das referências literárias, confesso que a experiência recente de Gramado me fez lembrar, por mera conclusão, numa das valiosas frases de Drummond. Em dada ocasião, o "Mestre de Itabira" disse: "Há duas épocas na vida, infância e velhice, em que a felicidade está numa caixa de bombons." Verdade. Ainda mais quando essa caixa for dos chocolates de Gramado. Reforça o saudosismo.
*Economista e produtor cultural
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