O que motiva os soldados norte-coreanos enviados para as linhas de frente na Ucrânia?
Cerca de 10 mil devem atuar ao lado das forças russas
Ao enviar cerca de 10 mil militares para as linhas de frente na Ucrânia, onde lutarão lado a lado com as forças da Rússia, a Coreia do Norte deu um dos passos mais importantes de sua História. Mas ao mesmo tempo em que um dos países mais militarizados do planeta tenta se firmar como uma potência em ações de combate, as autoridades fazem planos para manter os soldados leais ao regime, em uma estratégia que combina doutrinação, incentivos financeiros e promessas de status na sociedade.
Segundo informações de serviços de inteligência dos EUA e da Coreia do Sul, os soldados que vão combater — ou já estão combatendo, de acordo com Kiev — em solo ucraniano integram uma unidade de elite do Exército norte-coreano, conhecida por seu treinamento intensivo e pela lealdade absoluta a Kim Jong-un.
— Os soldados norte-coreanos estão convencidos de que devem fazer qualquer coisa por Kim — disse Ryu Seong-hyeon, um dos poucos militares que conseguiram desertar da Coreia do Norte, em entrevista ao Wall Street Journal.
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Como praticamente toda a população da Coreia do Norte, incluindo os filhos da elite, os militares enviados para a guerra cresceram sob intensa doutrinação oficial, que lhes ensinou noções de patriotismo e, acima de tudo, culto ao regime fundado por Kim Il-sung em setembro de 1948.
— Eles podem ser sacrificados sem causar muito impacto na guerra — disse ao Wall Street Journal Lee Hyun-seung, um desertor norte-coreano que integrou o batalhão de elite do país — Mas eles não ousariam lançar dúvidas sobre as ordens do líder de ir para a Rússia.
Representado pelas imagens inescapáveis dos líderes do país e do peculiar pop nacionalista com ares de canções dos anos 1980, o militarismo é parte crucial da doutrinação. Desde cedo, os cidadãos e cidadãs aprendem a respeitar o princípio do songun, que prioriza os gastos com defesa, convivem com as paradas nas quais os mísseis intercontinentais são exibidos e vestem trajes do Exército em eventos públicos em datas festivas.
Aos 17 anos, muitos torcem para serem escolhidos para prestar o serviço militar, que pode durar mais de 10 anos para homens e 7 para mulheres.
Se tornar um oficial de uma das Forças Armadas é o caminho mais rápido para ocupar postos de destaque no governo, garantir melhores condições de vida para a família e obter uma permissão para viver em Pyongyang, onde as condições são menos duras do que em outras regiões do país. E os exemplos do passado motivam os soldados do presente.
Durante a Guerra do Vietnã (1955-1975), a Coreia do Norte enviou militares para apoiar as forças do Vietnã do Norte, incluindo um grupo de pilotos que participou de uma série de batalhas contra os EUA (que tinham o apoio de forças sul-coreanas). Em entrevista ao Wall Street Journal, Sim Ju-il, um veterano do conflito, disse que os combatentes que voltaram vivos receberam homenagens e postos de destaque no governo — as viúvas dos que morreram foram alocadas em posições importantes no partido do regime.
Além do ideário próprio, nutrido por muitos anos de doutrinação, as autoridades desenvolveram um sistema para impedir que as pessoas destacadas no exterior, seja na guerra ou em posições diplomáticas, não saiam da linha.
Em declarações ao Business Insider, Joseph Bermudez Jr., especialista no setor de defesa da Coreia do Norte no Centro para Estudos Internacionais e Estratégicos, disse que provavelmente há observadores junto às tropas na Rússia.
— Eles fazem relatórios sobre todos — afirmou. — Eles estão bebendo demais? Estão tentando adquirir bens que não conseguem na Coreia do Norte e enviá-los para casa?
Os militares são submetidosa sessões de autocrítica, nas quais expõem publicamente como não cumpriram de maneira devida suas obrigações junto ao regime. No retorno para casa, é certa uma visita aos campos de doutrinação, quando devem reiterar sua lealdade aos Kim. E há uma outra forma menos sutil para evitar deserções.
— É muito típico para os Kim insistirem que pelo menos um membro de qualquer família operando no exterior permaneça em Pyongyang como refém — afirmou ao Business Insider Bruce Bennett, especialista do centro de estudos Rand.
Não raro, desertores afirmam que, assim que sua fuga do país foi confirmada, parentes foram mandados para campos de concentração, uma forma generacional de punição.
— Uma das maiores tristezas que eles têm é que deixaram a família — disse Bermudez, citando entrevistas com desertores norte-coreanos.
Outro fator que incentiva os militares enviados à Ucrânia é o financeiro. Segundo o Serviço Nacional de Inteligência da Coreia do Sul, a Rússia paga a Pyongyang o equivalente a US$ 2 mil por mês por cada soldado.
A maior parte vai para os cofres do Estado, mas em um país onde o salário médio fica entre US$ 1 e US$ 3 mensais, segundo o portal NK News (excluindo bônus, cupons de alimentação e itens subsidiados, além da cesta básica fornecida pelo Estado), mesmo um percentual desse dinheiro é uma pequena fortuna.
Por fim, a oportunidade de sair da Coreia do Norte e conhecer outro país, mesmo que em um campo de batalha, é atrativa. Dentro do draconiano sistema de censura estatal, os cidadãos têm pouco acesso a informações sobre o exterior, e o que passa pelos filtros nem sempre corresponde à realidade. Passes para ir ao exterior são raros e destinados apenas a alguns poucos funcionários do governo, e os casos de pessoas que pagam propinas para mandarem seus filhos ou serem indicados para posições em outros países são numerosos.
— Os soldados norte-coreanos veriam a ida à Rússia como uma oportunidade única na vida — disse, em entrevista à Associated Press, Ahn Chan-il, ex-militar norte-coreano e agora chefe do centro de estudos Instituto Mundial de Estudos Norte-Coreanos, em Seul.