Operação de portos está no centro das acusações de Trump sobre influência chinesa no Canal do Panamá
Rota é controlada por estatal panamenha, mas depende de investimentos estrangeiros para melhorar sua infraestrutura
Desde que foi eleito, Donald Trump tem dito que irá retomar o controle do Canal do Panamá e que, para isso, poderia usar a força militar. Ele alega que o controle efetivo da via é feito pela China, o que infringiria os acordos de neutralidade que envolvem o canal.
Não há nenhuma evidência pública que sugira isso, mas o que as acusações de Trump revelam é uma preocupação com o aumento da presença chinesa no entorno estratégico dos EUA.
O canal é administrado pela Autoridade do Canal do Panamá, uma entidade estatal que controla o tráfego e as operações da via marítima.
Nos últimos anos, porém, empresas chinesas têm aumentado sua influência em diversos negócios na região e o governo chinês estreitado relações com o Panamá, cobrindo demandas de infraestrutura na região.
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Inaugurado em 1914, o Canal do Panamá é vital para o transporte marítimo global, sendo a rota mais segura e eficaz entre os oceanos Atlântico e Pacífico. Por ele passam cerca de 6% do comércio mundial, nos cerca de 14 mil navios que fazem a rota todos os anos. O estreito de 82 quilômetros também conecta 1.920 portos em todo o mundo.
— A China opera o Canal do Panamá, e não demos ele à China, demos ao Panamá. E vamos recuperá-lo — ameaçou Trump em sua posse.
Reviravolta diplomática
No entorno do canal há quatro importantes portos de contêineres (Manzanillo, Balboa, Cristóbal e Colón), onde os navios esperam a passagem e podem realizar carga e descarga.
Dois deles são controlados pela Panama Ports Company, uma subsidiária da Hutchison Ports, com sede em Hong Kong. Um quinto porto está sendo construído e será controlado pelo consórcio chinês Landbridge na Zona Franca de Colón, a maior zona de livre comércio do Ocidente.
A Panama Ports Company venceu uma licitação quase sem concorrência do governo panamenho em 1997 para administrar os portos de Balboa, no Atlântico, e Cristóbal, no Pacífico, por 25 anos — uma concessão que foi prorrogada em 2022 até 2047.
Na época, um relatório do Comitê de Relações Exteriores do Senado dos EUA concluiu que o controle dos portos panamenhos pela Hutchison não era uma ameaça direta à segurança nacional, diz Daniel Runde, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS, na sigla em inglês).
"No entanto, após as restrições impostas pela China à autonomia de Hong Kong em 2020, o fato de dois grandes portos serem gerenciados por uma holding com sede em Hong Kong se tornou uma preocupação de segurança maior”, afirmou em artigo, referindo-se à Lei de Segurança Nacional, que cerceia a autonomia judicial do território.
Soma-se a isso o rompimento diplomático do Panamá com Taiwan e seu posterior reconhecimento do modelo chinês, em junho de 2017.
A reviravolta ainda foi seguida, já na semana seguinte, pelo início das obras da Landbridge e, cinco meses depois, pela adesão do Panamá — a primeira da América Latina — à Iniciativa Cinturão e Rota, um projeto de infraestrutura e investimento global trilionário capitaneado por Pequim.
Desde então, a China passou a investir pesadamente em projetos de infraestrutura estratégica que incluem portos em ambas as extremidades do canal — entre eles um porto de cruzeiros de US$ 206 milhões na entrada pelo Pacífico — telecomunicações e projetos rodoviários no valor de mais de US$ 2,5 bilhões.
Atualmente, um consórcio chinês também está a cargo da construção da quarta ponte sobre o Canal do Panamá, um megaprojeto avaliado em US$ 1,3 bilhão em 2023 e para o qual as empresas americanas se recusaram a concorrer.
Falta de investimento
O governo Trump teme que esses portos possam ser usados como um gargalo para impedir o comércio internacional ou mesmo como espaço de manobras estratégicas em um cenário hipotético de confronto aberto entre os EUA e a China — navios de guerra são autorizados a cruzar o canal em atividades pacíficas.
Também critica as taxas pagas por embarcações americanas para cruzar a via. São uma “piada completa”, declarou o presidente americano.
É verdade que as taxas de trânsito do Canal do Panamá aumentaram nos últimos anos, mas não pelos motivos que Trump alega.
Elas são calculadas usando uma fórmula universalmente aplicável que considera, entre outros fatores, o tamanho da embarcação, a urgência da reserva e o produto transportado.
Porém, a seca de 2023 e 2024 provocou uma forte restrição ao número de navios que podiam transitar pelo canal, gerando perda de receita, o que a Autoridade do Canal tentou contornar elevando os preços.
— É um argumento fátuo [o de Trump] que encobre a intenção de que o Panamá deve reduzir ao mínimo as relações com a China — disse à AFP o professor panamenho de Relações Internacionais Euclides Tapia.
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Os EUA são o principal parceiro comercial e de investimentos do Panamá: em 2023, o comércio entre as duas nações ultrapassou US$ 12 bilhões, e o valor do estoque de investimento estrangeiro direto dos EUA no país caribenho quase chegou a US$ 4 bilhões.
Mas há anos os americanos não atendem às necessidades de investimento em infraestrutura do país, enquanto as empresas chinesas entraram em cena para preencher esse vazio, alertam Andrew Sanders e Ryan Berg, do CSIS.
“As empresas privadas americanas não se envolveram em nenhum grande projeto de infraestrutura no Panamá nas últimas décadas. O exemplo mais notável (...) foi durante a enorme expansão da eclusa do canal, que ampliou significativamente sua capacidade. Ela foi inaugurada em 2016 e construída por um consórcio estritamente europeu”, disseram em artigo publicado na semana passada, lembrando ainda que o primeiro navio a transitar por elas foi de propriedade da chinesa Cosco”.
Como parte dos tratados de 1977, nos quais os EUA entregaram o canal ao Panamá em 1999, os panamenhos se comprometeram a garantir que a hidrovia fosse permanentemente aberta a todos os países.
Contudo, nestes acordos há emendas introduzidas pelos EUA sobre a possibilidade de Washington usar força militar unilateralmente para “defender o canal contra qualquer ameaça” de fechamento.
— Somente fabricando uma operação de falsa bandeira, por meio de uma operação secreta, Trump poderia justificar o uso de força militar no Panamá, e isso exclusivamente para manter o canal aberto, não para tomá-lo e usá-lo economicamente — diz Tapia.