A última do português
A gente está no nosso canto e, por motivo que não vem à memória nem vem ao caso, corre para o notebook para buscar informações sobre um determinado produto; no caso, um DVD (1). Para quem não sabe, DVD é a sigla de "Digital Versatile Disc"; em português, Disco Versátil Digital. Pois bem, estava à procura de um filme em DVD e fiz uma pergunta ao vendedor: está lacrado? A resposta veio rápido: - “está semi-lacrado”.
Fui atrás da palavra nos dicionários e, para não perder a viagem, o significado de “a última flor do lácio” que Olavo Bilac usou para falar do português, digo, da língua portuguesa. A língua dos romanos era o latim, falada por políticos, intelectuais e cientistas. Os povos das regiões governadas pelos romanos criaram oito línguas vivas (italiano, francês, provençal, espanhol, catalão, galego, romeno e português). A morta, coitadinha, foi o dalmático. D. Afonso II, 3º rei de Portugal, deixou testamento que passou a ser considerado como texto mais antigo da escrita portuguesa. Em 1290, D. Dinis decretou que a “língua vulgar” fosse usada na corte, em vez do latim, ou seja, o português estava oficializado; foi a última língua neolatina reconhecida, daí a expressa “a última flor...”.
O registro histórico foi proposital. A língua portuguesa já era complexa e com a nova revisão (que não é tão nova), ficou ainda mais complicada, pelo menos para mim. Não sei se isso acontece noutros países que falam o português e não sei como respondem às perguntas “a moça é virgem?”, “fulano morreu?”, “beltrano nasceu?”. Para mim, não há meio-termo para essas e questões similares. Por isso, estranhei dois pontos: primeiro, com relação à resposta do vendedor; segundo, em relação à grafia (“semi-lacrado”). Em síntese, não existe meio lacre; se foi aberto, perdeu o status de lacrado.
Aproveito a deixa para criticar essas revisões da língua ortográfica que fazem de vez em quando. Oficialmente, houve duas reformas (foram nove), em 1943 e 2009. Esta, tinha como objetivo “incluir novas letras no alfabeto”. Ora, as letras já existiam e foram retiradas em algum momento. Acho que é a mais complexa, a que tem regras e mais regras, e com alguns pontos que confundem sujeitos semianalfabetos, assim como eu. Refiro-me às palavras que perderam acentos e se vierem desacompanhadas, não saberemos o seu significado. Posso listar um monte delas, mas não é o caso nem há necessidade. No mais, a ciência poderá explicar o semilacre e o Google Maps poderá indicar onde fica o Lácio.
(1) A Paixão de Joana D’Arc, 1928, de Carl Dreyer, um dos “dez melhores filmes já feitos”, na lista de Walter Moreira Salles.
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