opinião

A violência doméstica não pode ser normalizada. A gente mete, sim, a colher

A violência doméstica é um problema social profundo, multifacetado e democrático: afeta mulheres de todas as classes sociais, credos, cores e níveis educacionais. No Brasil, temos leis, como a Maria da Penha, aliás um grande marco, e ainda avanços na conscientização pública, mas, mesmo assim, nosso país ocupa a quinta posição no ranking mundial de feminicídios, segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. 

Essa triste posição reflete uma combinação de fatores que inclui a cultura patriarcal, a desigualdade de gênero e a impunidade em muitos casos de violência doméstica e de gênero.  

Até pouco tempo, exatamente como o ditado popular reverbera "em briga de marido e mulher, ninguém metia a colher", a violência no ambiente doméstico ficava como um assunto privado. Hoje, começamos a perceber que é um problema de saúde pública que impacta na integridade psíquica de todos os membros da família, não só da vítima, e esta é reconhecida pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) como hiper vulnerável.

Tratar como uma briga de casal não só silenciou as vítimas, como também legitimou comportamentos abusivos por parte dos agressores, muitas vezes vistos como normais ou naturais. Frases como "não é nada demais" ou "é só o jeito dele" eram (e muitas vezes ainda são) usadas para minimizar ou justificar atos de violência. Como diria Hannar Arendt, há muito perigo na banalização do mal.

Essa normalização é tão delicada que muitas mulheres sequer se dão conta de que estão sendo vítimas de violência, não conseguem identificar os primeiros sinais de perigo, aceitando comportamentos abusivos como parte da vida.

A educação e socialização das mulheres também desempenham um papel crucial nesse cenário. Desde cedo, muitas são ensinadas a valorizar o casamento e a constituição de uma família como o ápice do sucesso feminino, enquanto a independência e a realização pessoal, fora desse contexto, são frequentemente desvalorizadas.

Essa expectativa social coloca uma pressão enorme sobre nós, mulheres, para que mantenhamos relacionamentos, mesmo quando são prejudiciais ou abusivos. Afinal, o casamento aumentaria nossa mais valia social. Em contrapartida, homens solteiros ou sem filhos não enfrentam o mesmo tipo de estigma, evidenciando uma disparidade na maneira como o sucesso e a felicidade são medidos para ambos os sexos.

Outro aspecto relevante é a educação baseada na culpa, na qual as mulheres são frequentemente responsabilizadas por manter a harmonia no lar, o que inclui suportar maus-tratos e evitar a denúncia de abusos para "não destruir a família". Essa dinâmica perpetua o ciclo de violência, pois ela se sente culpada ou envergonhada em buscar ajuda, temendo o julgamento social ou a própria insegurança quanto ao que é ou não considerado abuso.

Portanto, é urgente que a sociedade repense essas questões e abandone mitos que só contribuem para perpetuar a violência contra a mulher. A educação e a conscientização devem ser as principais ferramentas para transformar essa realidade, incentivando as vítimas a reconhecerem o abuso e a buscarem apoio sem medo de represálias ou julgamentos. 


* Advogada. Mediadora. Sócia do Bahia, Lins e Lessa – sociedade de advogadas. Coordenadora do Curso de Direito da Faculdade Nova Roma

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