Ainda estou aqui. O Festival de Veneza. A História
Walter Salles é um cineasta consagrado. Filho do embaixador Walther Moreira Salles, que foi Ministro da Fazenda do Presidente João Goulart sofrendo perseguição política que o conduziu para o exílio, e da embaixatriz Margarida Gonçalves Moreira Salles. Seu genitor foi um líder do mercado financeiro e pai dos herdeiros do Banco Itaú. O meio em que viveu e conviveu não impediu que ele desenvolvesse uma consciência crítica da época em que existiu, inserindo-se no seu contexto social com a visão e o entendimento do mundo real. Eram tempos tempestuosos e insanos.
Em 1998 Walter Salles dirigiu o filme Central do Brasil. O longa metragem teve consagração mundial no Festival Sundance de Cinema, nos Estados Unidos. Esteve entre os Melhores do Ano e recebeu “Aclamação Universal”. Walter Salles considerou o filme uma odisseia. Um garoto em busca do pai, uma mulher à procura dos seus sentimentos, um país à procura de suas raízes.
O enredo gira em torno de Dora, interpretado por Fernanda Montenegro, uma professora aposentada que trabalha como escritora de cartas para analfabetos na Estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro.
Eis que agora o consagrado cineasta lançou o filme Ainda Estou Aqui que estreou no Festival de Veneza em 2 de setembro de 2024, tendo como roteirista Murilo Hauser e Heitor Lorega. Fernanda Montenegro e Fernanda Torres representam Eunice Paiva em diversas idades.
No elenco Selton Mello está no papel de Rubens Paiva. O espetáculo emocionou o público “levando-o a aplaudir o enredo e os protagonistas por 10 minutos”. Fato que se repetiu no mesmo festival, em oportunidades diversas.
O filme Ainda Estou Aqui é fundamentado no livro biográfico de Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens Paiva, e autor de outras obras como Feliz Ano Velho. Marcelo Rubens Paiva diz em entrevista que vê a “memória como um bem precioso e que como escritor tem o hábito de revisitar o passado”.
No livro Marcelo se reporta a Eunice Paiva, sua mãe e mulher de Rubens Paiva, o ex-deputado federal pelo Rio de Janeiro que na sequência do golpe militar de 1964 foi cassado e exilado. Mais tarde, na volta do exílio, foi sequestrado no dia 20 de janeiro de 1971 pelos verdugos da ditadura militar que se estabeleceu no Brasil. Está entre os tantos desaparecidos políticos daqueles tempos de incertezas. É um morto insepulto.
A história do filme é uma viagem trágica pelos porões da repressão. No epicentro do enredo aparece Eunice Paiva, pois o filme se fundamenta no livro biográfico de sua mãe. O ex-deputado Rubens Paiva morava em uma casa que olhava para a praia e o mar do Leblon. Ao desaparecer da sua família, dos amigos, nos primeiros dias do ano de 1971, apareceria para sempre nas páginas da História do Brasil.
A partir dos fatos narrados, Eunice Paiva agigantou-se como cidadã. Era até então uma dona de casa no velho estilo das famílias burguesas da época. Com os bens do marido bloqueados, formou-se em direito aos 46 anos de idade e tornou-se pai e mãe de cinco filhos menores.
Marcelo Paiva confessa em entrevista a Amanda Pechy na revista Veja que a morte de sua mãe em 2018, diagnosticada com Alzheimer aos 72 anos, impulsionou-o a escrever a história da sua vida, com o temor de que suas descobertas sobre a tirania do AI-5, conseguidas com grandes sacrifícios e lutas, desaparecessem para sempre da sua memória.
Marcelo Paiva nos revela ainda que sua mãe, no dia em que o presidente Fernando Henrique Cardoso assinou a lei de reconhecimento dos desaparecidos da ditadura, abraçou um general. Era o seu jeito de ser, diz.
O filme foca aspectos da ditadura, revivencia informações que estavam olvidadas e define para sempre o compromisso magistral da arte com a sociedade. Tal como faz o bom jornalismo na busca incessante da verdade.
* Procurador de Justiça do Ministério Público de Pernambuco. Diretor Consultivo e Fiscal da Associação do Ministério Público de Pernambuco. Ex-repórter do Jornal Correio da Manhã (RJ)
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