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OPINIÃO

As barbas de Rasputin

Entrevistada por Roberto d'Ávila, Fernanda Montenegro disse que os dois maiores escritores brasileiros são Nelson Rodrigues e Ariano Suassuna. Dois nordestinos. Peguei a deixa, reli À Sombra das Chuteiras Imortais (Companhia das Letras, São Paulo, 1993). As primeiras 31 crônicas foram publicadas na revista Manchete Esportiva. Entre os anos de 1955 e 1959.

Conheci Nelson Rodrigues quando cumpria meu mestrado na FGV, Rio, em 1973. Eu morava na rua Maria Quitéria, em Ipanema. No prédio de junto ao que ele residia. E o via, todo domingo, tomando, carona, o carro de Marcelo Soares de Moura. Para irem ao Maracanã. Nunca tive a coragem de lhe dar sequer um bom dia. Mas, qual devoto, dominicalmente, assistia o embarque do profeta fluminense para o apostolado do futebol.

Nelson Rodrigues não deve ser classificado. Dizer que ele foi autor teatral, escritor, cronista, jornalista, é enunciar pouco sua grandeza. Humana, literária, oceânica que era. Como cronista de futebol, ele tinha algumas ideias fixas. Uma, era o conceito de que o jogador de futebol brasileiro era pouco viril, um bailarino. Ele atribuía o fato ao complexo nacional do vira-latas. O brasileiro se sentiria inferior em face do resto do mundo. Outra, a noção de que João Saldanha deveria ter sido o técnico da seleção brasileira menos por suas qualidades do que por seus defeitos. 

Nelson dedicou algumas crônicas à genialidade de Garrincha. Quando o Mané entortou os zagueiros russos em 1958. Depois do jogo contra a Rússia, ele saía driblando um, mais um, mais outro, enganava o terceiro, engolia o quarto. Dava o passe com açúcar para Pelé. Ou para Didi. Ou ele próprio se encarregava de fazer o gol. Driblava até as barbas de Rasputin. Como marcar o imarcável? Como apalpar o impalpável? Gerava uma indignação impotente. Com pernas tortas. 2 x0. Em Gotemburgo. Suécia. Contra a Espanha, a vitória brasileira será uma tela de Goya. Um time de Napoleões.

Nelson era torcedor do Fluminense. Na crônica de 09.11.1963, ele escreveu: "No futebol, como na literatura, convém não ser estilista demais. Enquanto o Fluminense foi perfeito, não fez nenhum gol. Tudo certo, exato, irretocável. No meu canto, eu via a hora em que perderíamos o jogo. E vem a grande verdade: a obra-prima, no futebol e na arte, tem de ser imperfeita. A partir do momento em que o Fluminense deixou de ser tão estilista, tão Flaubert, os gols começaram a jorrar aos borbotões".

Em 04.06.1970, Nelson publicou crônica em que escreveu o seguinte: "E Gerson? Quanta gente o negou? Quanta gente disse: Não tem sangue! Não tem coragem! O vampiro de Dusseldorf, se provasse o sangue de Gerson, havia de piscar o olho: sangue do puro, do legítimo, do escocês”. Nos anos 60, o time do Botafogo era uma seleção. Contava com Nilton Santos, Garrincha, Didi, Paulinho, Zagalo. Didi era o mais elegante dos jogadores brasileiros. Esguio como Ademir da Guia. Com uma vantagem: foi o inventor da folha seca. Um tipo de chute, mortal, que mudava o curso da bola, enganava o goleiro e entrava no gol. Para Nelson, Didi nunca devia ter sido negociado. Devia integrar-se à mobília do clube. Até virar uma múmia gagá.



* Advogado, economista e colunista desta Folha de Pernambuco.
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