As lições herdadas pelo governo Lula da eleição dos Estados Unidos
Desde que eleito, a estratégia do presidente Lula é clara: reduzir o peso da pauta de costumes e assegurar o apoio do eleitorado pelo discurso econômico.
Os números e a realidade é que não conversam entrem si. Os dados do PIB e do mercado de trabalho surpreendem, mas apenas 36% dos brasileiros aprovam o governo, enquanto 32% desaprovam e os demais avaliam como regular, segundo a última pesquisa do Datafolha.
Os Estados Unidos experimentaram algo parecido. A economia americana viveu uma recuperação econômica invejável após a pandemia, como ilustrado nas taxas de desemprego em mínimas históricas. E a democrata Kamala Harris acabou derrotada nas urnas.
Além de questões socioculturais, analistas afirmam que dados econômicos encobertos pelos números positivos ocuparam papel central nas insatisfações do eleitorado americano, em especial a inflação e a desigualdade de renda crescente.
Ao longo do governo de Joe Biden, os preços aumentaram um tanto (como a alta de 6,5% em 2022, por exemplo). Resultado disso é que o poder de compra ficou comprometido. O salário aumentou, porém as contas mensais ficaram mais apertadas.
Os mais pobres é que sentiram isso na pele, já que a sua renda não cresceu na mesma velocidade que a do restante da população. Segundo o World Income Database (WID), a concentração de renda nos Estados Unidos piorou nos últimos quatro anos. A renda dos 10%s mais ricos aumentou e a metade mais pobre permaneceu estagnada.
Em outras palavras: o bolo cresceu, mas não foi bem dividido. O eleitor americano levou isso conta na hora de elegeu Donald Trump.
Já no Brasil, o Índice de Preços ao Consumidor (IPCA) registrou inflação de 4,8% nos últimos 12 meses (acima da meta de 4,5% fixada pelo Banco Central). Com destaque para o preço da carne que subiu 5,8% só em outubro, em oposição à promessa de Lula de que o brasileiro voltaria a comer picanha.
Uma das causas disso é a desvalorização do real que encarece os produtos importados ou negociados em mercados internacionais (como a carne). Se é certo que políticas protecionistas de Trump prometem fortalecer ainda mais o dólar, por ora a razão principal da depreciação do real é doméstica: a venda de moeda brasileira em meio à desconfiança pela trajetória da dívida pública.
A fim de recuperar a credibilidade da política fiscal, o ministro Fernando Haddad está prestes a lançar um pacote para o controle dos gastos obrigatórios. Estão no cardápio medidas impopulares que afetam o seguro-desemprego, o abono salarial e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), além da regra de correção dos pisos de saúde e educação.
Caso se confirme, o ajuste fiscal ameaça agravar a desigualdade crescente. A recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), divulgada em abril, revelou que a renda dos 10% mais ricos cresceu mais do que a da metade mais pobre nos 12 meses anteriores. Assim como no exemplo americano, quem sente mais diretamente os efeitos da inflação são os mais pobres, os mesmos ameaçados pelo ajuste fiscal.
De olho em 2026, esta situação ameaça o desempenho eleitoral do presidente Lula na fração do eleitorado que garantiu a sua vitória na última eleição. Tanto quanto a perda dos votos de latinos e eleitores sem diploma universitário foi determinante para a derrota do Partido Democrata, a perda de apoio entre os mais pobres pode selar o destino de Lula e do Partido dos Trabalhadores.
A alternativa é que o combate à inflação seja acompanhado do enfrentamento à desigualdade. Há duas pautas na ordem do dia que vão nesta direção: (i) o aumento dos impostos sobre os mais ricos, tal como previsto no texto da reforma tributária sobre o consumo de que o Poder Executivo encaminharia uma reforma da tributação da renda logo em seguida (art. 18 da EC nº 132/2023); e (ii) a PEC da Deputada Erika Hilton (PSOL-SP) que prevê o fim da escala 6x1 (uma folga a cada 6 dias de trabalho), em atendimento à saúde e dignidade dos trabalhadores.
É a chance de os números enfim dialogarem com a realidade. Justo o que o governo Lula precisa para evitar destino semelhante ao americano.
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*Advogado, filósofo e diretor da Câmara de Comércio Brasil-Portugal
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