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OPINIÃO

Biografia do abismo

Recebi de Fernando Figueira, cultor da boa leitura e perspicaz interessado na compreensão dos fenômenos que regem o ordenamento social à luz da ciência política, o livro Biografia do Abismo, cujos autores são Felipe Nunes, PHD em ciência política e mestre em estatística pela Universidade da Califórnia, em Los Angeles e Thomaz Traumann, jornalista e mestre em ciência política pelo IESP/UERJ, ambos com amplo currículo nas suas especialidades.

Livro de poucas páginas (211), ampla referência bibliográfica e conteúdos digitais. 
Considerando que a divisão política no Brasil não seja um fato novo, podemos mesmo afirmar que é recorrente, estando atualmente edificada em torno da dicotomia petismo e antipetismo, não comportando assim mais de dois termos.

Se voltarmos um pouco a tempos relativamente recentes, constatamos que a postura é endêmica e marcada pela intolerância com os contrários.

No ciclo ditatorial que teve início em 1º de abril de 1964, o grito da não aceitação dos divergentes virou palavra de ordem: “Brasil: Ame-o ou deixe-o”. A ditadura por si só se definia ao mesmo tempo que inspirava os arautos e defensores do Estado Democrático de Direito para criação de belas composições musicais que se tornaram hinos de louvor aos valores democráticos, tais como: O bêbado e a equilibrista, de Aldir Blanc e João Bosco; Apesar de você, de Chico Buarque, Vai passar, de Chico Buarque e Francis Hime, Tô voltando, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro.

Apesar de Você foi proibida por oito anos na ditadura militar. Ao final do governo Geisel, Clara Nunes regravou a música sem saber o tema implícito. Posteriormente viu-se obrigada a se apresentar nas Olimpíadas do Exército de 1971 para “compensar” o mal-entendido. Pontuam os pesquisadores.
Voltemos ao tema do artigo.

O trabalho editorial expõe para um grande público como se processam atualmente os meios de comunicação de massa que tiveram origens com o rádio e posteriormente com a televisão até chegar aos tempos modernos com o advento da internet que tem no celular o veículo mais eficiente de comunicação.

Mensagens autoritárias, apologia ao uso de arma, a não aceitação do processo eleitoral, internacionalmente reconhecido seguro, a utilização das redes sociais como marketing de atividade para desacreditar os valores da democracia foram fatores ponderáveis para desestabilizar a sociedade com sua capacidade de produzir falsas notícias, as famosas Fake News, disseminando a raiva, o ódio, a intolerância que conduz à desagregação e consequentemente derivando para outras questões que envolvem etnia, religião e identidade de gênero.

Segundo os autores, a massificação da informação teria começado nos tempos de Theodore Roosevelt (1858-1919), presidente norte-americano, em seus programas de rádio, e tido sequência nos tempos de Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), seu primo em quinto grau e também presidente norte-americano, que foi eleito para quatro mandatos presidenciais.

Como se verifica, a polarização política não é uma questão puramente nacional. Ela está estabelecida nos Estados Unidos e nos países europeus em razão da não aceitação da coexistência pacífica entre progressistas e conservadores, agravada com o crescimento da extrema-direita no mundo, beneficiada com a atuação implacável das redes sociais na difusão de valores improváveis.

No caso do Brasil gira em torno de Bolsonaro e Lula. Duas pessoas de perfis absolutamente distintos, nos discursos e nas trajetórias de vida. O primeiro, filho de um dentista prático (não diplomado) vindo da classe média baixa, conseguiu ingressar na Academia Militar das Agulhas Negras- AMAN, chegando ao posto de Capitão, quando, envolvido em procedimentos que feriam o pundonor militar, foi processado. Para evitar a expulsão do Exército, resolveu se aposentar, iniciando sua vida pública como vereador e deputado federal por sete mandatos, sem qualquer trabalho de relevância e demonstrando, desde então, sua incompatibilidade com a democracia. O segundo, filho de pai vivendo em condição de miséria, conheceu muito cedo a orfandade de pai vivo que abandonou a família. Casou com Maria de Lourdes da Silva, conheceu a viuvez precoce em trabalho de parto e assistiu a morte do primeiro filho. Nasceu em Caetés, no agreste Pernambucano, e chegou a São Paulo viajando em um caminhão “pau de arara’. Na cidade grande foi tudo: engraxate, office-boy, frequentou um curso de torneiro mecânico no SENAI-Serviço Nacional de Aprendizagem durante três anos. Agora era torneiro-mecânico, daí em diante conheceu prisões, venceu eleições, foi um dos protagonistas das Diretas Já, e tornou-se a maior liderança popular do país.

Os autores reconhecem que os trabalhos de pesquisa são os fundamentos que embasam o livro. Para tanto contaram com a colaboração do Instituto Quaest em parceria com a Genial Investimentos que financia levantamentos estatísticos sobre eleições presidenciais, sendo filiado a Associação Brasileira das Empresas de Pesquisas.

Baseados em dados estatísticos, Filipe Nunes e Thomaz Traumann aprofundaram suas observações para o que eles consideram de Calcificação da Sociedade, como consequência da polarização desracionalizada citando, inclusive, o educador Paulo Freire, referência como criador de um método de alfabetização de adultos, na qualidade de colaborador do Governo João Goulart e declarado Patrono da Educação Brasileira, que teve o título cassado pelo Presidente Jair Bolsonaro como manifestação de intolerância. Achando pouco, Bolsonaro ainda chamou o educador de energúmeno. Na mesma linha de raciocínio, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas também trocou o nome de uma Estação de metrô na capital paulista que seria Educador Paulo Freire pelo bandeirante Fernão Dias. Como se vê Bolsonaro faz escola e tem seguidores na calcificação da sociedade.

Diversos analistas como a jornalista Renata Lo Prete, Edmar Bacha, economista, um dos ideólogos do Plano Real, como também Nizan Guanaes, publicitário, consideram a leitura de Biografia do Abismo fundamental para se ter a real percepção do dimensionamento da polarização que ofusca a capacidade de se adentrar em um projeto eficaz que una as aspirações coletivas do Brasil.

Para acontecer o que os analistas pretendem é imperioso que a sociedade se conscientize, pela sua maior representação, do dever indeclinável de defender os valores maiores da democracia que são: supremacia da vontade popular; preservação do direito de ir e vir; direito à vida; liberdade de expressão; igualdade entre homens e mulheres; proteção da intimidade e da vida privada, liberdade para exercer sua profissão e igualdade política.

O livro publicado em 2024 antecede os últimos acontecimentos que revelaram a existência de uma trama golpista que envolvia militares de alta patente, em conluio com Bolsonaro, que previa o assassinato do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do vice-presidente Geraldo Alckmin e do ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes.

Antoine Vitkrine é autor do livro Mein Kampf: A história do livro. Mein Kampf (Minha Luta), foi escrito por Adolf Hitler no tempo em que esteve na prisão de Londsberg, situada no sudeste de Baviera, pelos idos de 1923/1924, juntamente com Rudolf Hess. Foi lá que Hitler se tornou escritor e teorizou suas convicções, formulando o entendimento de que a “grande massa de um povo não é composta de professores nem de diplomatas. Ela não tem muito acesso às ideias abstratas. Em compensação, será mais fácil empolgá-la no terreno dos sentimentos e é aí que se encontram as molas secretas propulsoras de suas reações.” Está lá escrito no livro.

No epílogo do livro Mein Kampf: A história do livro, estão expostas sete lições. A primeira é de que se dê atenção aos projetos políticos fanáticos e violentos, sobretudo quando são tornados públicos. No prólogo da obra o autor esclarece: este nunca foi um livro obscuro ou hermético. Mais adiante ele adverte sobre a inquietação do filósofo alemão Viktor Klemperer: “Como é que esse livro pôde ser divulgado e que apesar disso foi possível chegar ao regime de Hitler”

O plano golpista que seria executado no Brasil, tinha um roteiro inacreditável, eivado de detalhes sórdidos que previa desde a ruptura do Estado Democrático de Direito e até assassinatos. Em face dos dados concretos regularmente apurados, que não resultaram de simples informações ou delações, porém de provas coligidas pela Polícia Federal com documentação procedente, a resposta deve ser proporcional.
O livro Biografia do Abismo chegou em boa hora.

Ditadura nunca mais.

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*Procurador de Justiça do MPPE. Diretor Consultivo e Fiscal da Associação do MPPE. Ex-repórter do Jornal Correio da Manhã (RJ)

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