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OPINIÃO

Brasil, um Reino Indigno

Voltei para casa ainda com dores lancinantes no quadril e na perna esquerda. O Carnaval havia, em definitivo, sido adiado para o ano seguinte. Abro a porta e me deparo, como sempre, com a minha “rosa dos ventos”, onde sempre vejo o mundo. Esse olhar sempre me acalmou: o Atlântico, mesmo distante, aproxima-me de horizontes, e pensar em horizontes é como imaginar-se além da dor, seja ela física ou do espírito. Despejo no sofá o cansaço, atenuado pela cumplicidade de Budah. 

Sozinho, passei a aguardar o preenchimento da parte ausente do lar, o que ainda retorna, pois outras duas partes já possuem os seus próprios. Ponho-me a zapear a TV, no intuito de encontrar algo que me esvazie; sim, a televisão para mim quase sempre me completa, impedindo que alguma ideia venha à minha mente, mas fui surpreendido pelo lançamento da minissérie “Il Gattopardo”, inspirada no romance homonimamente traduzido no Brasil como “O Leopardo”, invés de “Guepardo”, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa. 

Como nada é à toa, a solidão momentânea ferveu a realidade e não a doce ilusão momesca. Li o livro nos idos do final de 1980, emprestado, após ter ouvido uma palestra na Faculdade de Direito do Recife, na qual o orador citou a frase, talvez a mais conhecida por todos, posto recorrente no enredo de diversas formas, que exprimia a ideia de se “necessitar mudar algo para que tudo permaneça como está”. 

Preenchi o meu carnaval assistindo a toda a série e, tal como uma epifania, uma espécie de “batismo” divinal, vi-me absorto em meio a inseguranças de futuro, não mais minhas, mas dos meus quatro que, em tese, “ainda estarão aqui” por mais tempo. “O Brasil não é para amadores.” A Sicília descrita em O Leopardo também não. A figura do “Príncipe de Salina”, universal e local, ao celebrar a sua aldeia, Palermo, conecta o fim do século XVIII na Itália, no processo de sua unificação, com o Brasil, em sua transformação de Império em República. 

Sim, meus diletos, paradoxalmente, a unificação Italiana quase se alinha com a nossa República, fazendo ruir um mundo de valores elevados (e de pobreza, sim) por outro mundo, de valores aparentemente também elevados (e de pobreza, também), afinal, “algo tem sempre que mudar para que as coisas permaneçam como está”. Eis aí as conexões. Nossa República fez nascer uma classe política de aproveitadores, em substituição a outros aproveitadores. Uma espécie de “Nova Monarquia”, legitimada por um estado republicano, no qual a “Estirpe Política Familiar” substituiu a “Estirpe da Nobreza”. 

No romance de Lampedusa, “Fabrizio de Corbèra – o Príncipe de Salina” intui todas as mudanças. Como aristocrata, assiste à chegada de “Garibaldi” a Palermo – mais uma conexão com o Brasil –, e nela vê aprofundar-se uma mudança de valores, antes perseguidos por uma sociedade, mas que dá acesso a uma burguesia ávida por lucro e poder crescente, em meio às mudanças que se operam na vida dos italianos. O “Risorgimento” foi retratado no romance, guardando nos personagens históricos e fictícios o drama das mudanças de valores, capazes de fazer com que os piores ascendam, enquanto os melhores sucumbem. Eis um fio de narrativa, dentre tantas outras nesse belíssimo romance. 

Essa melancolia, nesse período de carnaval, tomou conta de mim. Olhar, através de minha “Rosa dos ventos”, o mesmo futuro que um dia prometera um país, somente me fez curvar os ombros num cansaço abissal. “O Brasil não é um País do Futuro.” Causa-me espanto a quantidade de “Calogero Sedaras” – o típico aproveitador político que ascende ao poder e vê, em toda a suposta magnitude de seu cargo de senador da “Nova Itália”, o desejo de legitimar-se como uma espécie de “nova nobreza”. 

A nobre política filial que, no Reino Italiano Unido, tal qual na República do Brasil, faz perpetuar famílias em todos os quadrantes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Uma espécie de “divindade nobiliárquica” que faz casar famílias, que, mesmo em discursos de mudanças, ou de republicanismo e democracia, nada mais fazem senão reproduzir uma espécie de desdém pelos mesmos pobres de ontem, hoje e sempre. Não acredito no Brasil; não há tese do “pêndulo” político. O que há é apenas um desejo intrínseco de poder. Não passamos de um povo refém de um estado, seja qual for, e a disputa por esse mesmo estado se dá pelos “Donos do Poder”, os Calógeras de um mundo principesco estatal chamado Brasil. 

Quantas fortunas vi crescer em meio aos “negócios públicos e ganhos privados” com os governos! Quanta soberba assisti na vaidade dos que se autointitulam donos do bem! E assim, tal qual no livro, como o personagem do “Príncipe de Salina”, renuncio veementemente a esse mundo falso que não me pertence absolutamente. Sentado no mesmo sofá, olho para Budah e me lembro de outro personagem central do livro: o fiel cachorro de Fabrizio Corbera, “Bendicò”, presente no romance até sua última página, apesar do tempo impossível de vida. “Bendicò” desaparece, não com a morte, mas com o desaparecimento da dignidade.


* Advogado e especialista em Transformação Digital pela PUC-RS.

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