Carta para Nanda com minha percepção de uma nova "A História Oficial", no "Modo Brasil"
Estimada Nanda
Que conquista foi esta?
Antes, porém, sobre o tratamento que acima lhe destino, não se deve apenas ao meu discreto envolvimento com o nosso valoroso audiovisual. Nem muito menos, pelas boas recordações que o Cine PE já proporcionou à sua família, com as presenças vitoriosas de Dona Fernanda (mãe), Seu Fernando (pai), Andrucha (marido) e Cláudio (irmão). Que digam as exibições de "Central do Brasil", "A Ostra e o Vento", "Casa de Areia", "Do Outro Lado da Rua" e "Traição". Todas passaram indícios de uma certa proximidade, que me dá essa dose de ousadia.
Pois bem, agora, junto-me a muitos milhões de brasileiros, na intenção de dizer que contagios de orgulho e contentamento, diante referências ou exemplos, costumam deixar a gente mais próximo dos ídolos. É a tal empatia nacional, que inflama nossa identidade, capaz de destilar conquistas históricas e meritórias, numa pura emoção.
Quero crer que muitos amanheceram, na segunda-feira 06 de janeiro, com marcas de alegria estampadas nos semblantes. Bem que pareceram com as lembranças dos títulos de copa do mundo, algo que a gente parece ter perdido de vista. Melhor comparar com a conquista de medalhas olímpicas, sobretudo, aquelas que tornam inevitável deixar os olhos da nação lacrimejados. Como foi bom me ver ligado à TV e acompanhar a nominação do seu "Globo de Ouro". Daí, comemorar como se fosse um gol de título, no instante final do tempo de acréscimo.
Também como fosse uma medalha de ouro no peito. Uma digna alegria esportiva consagrada, sem direito a VAR. No máximo, uma tela compartilhada por imagens de estrelas de cinema concorrentes do seu troféu. Todas, aliás, com sinais de respeito. Sim, voltados para uma latina, que emocionou ao interpretar, em bom português, mais um caso de enorme resiliência. Precisamente, pelo retrato de vida sobre uma mulher brasileira, enaltecido pelo ofício de atriz vencedora e sem contestações, que transbordou luta e sensibilidade na interpretação da brava Eunice. Uma mulher abatida com sua família pelos abusos de um regime político autoritário.
Sua surpresa pela escolha do júri, minha cara Nanda, foi demonstração natural de elegância espontânea. Justo por já se sentir lisonjeada, em participar do grupo de indicadas ao prêmio. No entanto, bem além disso, creio que também foi pela consciência de que seu trabalho não só valeu à pena para justificar uma forma simples de se reconhecer o mérito. Saiba que foi também resultante de exercícios coletivos, de valores plurais, que lhe acompanharam nas suas convicções sobre uma sociedade brasileira, que ainda tem muito que aprender sobre identidade cultural.
Com isso em mente, essas horas de felicidade nacional servem como oportunidades, para que conceitos e decisões passem por revisões. São situações que costumam esperar por impulsos reativos, quem sabe capazes de apontarem para rumos que ajudem a restaurar valores de uma sociedade que, de fato, possa ser justa e desenvolvida. Suas palavras e atitudes gestuais estavam ali imbuídas desses compromissos. Desde quando você saiu da mesa e se dirigiu ao palco.
Assim, Nanda, há mesmo lições para serem extraídas desse seu feito glorioso. De temas simples e palpáveis, até os mais complexos e distantes. Estávamos todos por lá, num momemro todo seu. Mas, contagiado pelo orgulho da nação brasileira.
Para reforçar isso e concluir esta singela carta, busco algum respaldo com a experiência argentina, aproveitando-me da mesma semelhança que enseja uma conquista internacional com tal gabarito. Nesse particular, refiro-me ao feito de Luis Puenzo, que com seu filme "A História Oficial (1977), garantiu o primeiro Oscar de melhor filme estrangeiro para aquele país. Faço uso desse recurso, não só pela sintonia do enredo desse filme com a história real vivida pela sua interpretada Eunice. É que também aproveito o simbolismo do título, para destacar outras histórias oficiais, que esse momento do audiovisual nacional poderá ajudar a construir e fortalecer. A partir da sua conquista.
De pronto, a realçar aqui a própria essência do filme, enquanto esforço de um reforço histórico, para resgatar uma dura verdade, que nunca fez parte do "mundo oficial". Neste aspecto, o texto original de Marcelo (o filho que sofreu na pele os rancores políticos aplicado aos pais) e a direção competente e perfeccionista de Walter são, por si, lições extraordinárias. Aprendizado para quem não viveu ou nunca se interessou por saber desses fatos históricos, quase sempre omitidos. O filme fez por "apertar o botão de comando" do nosso "modo brasileiro" de se ver numa nova (e nossa) "A História Oficial".
Entre "outras histórias oficiais", você Nanda, fez valer o protagonismo feminino no papel de Eunice, não apenas exercendo a dureza que foi a vida dela, enquanto mulher, esposa e mãe. Sua condição pessoal de ser uma "homo culturalis" plena de múltiplos talentos (atriz, roteirista, cronista e escritora) fez diferença. Ou seja, naquele esforço coletivo de todos que compuseram a produção, você pode extrapolar sua missão artística que cabia ao filme. Nele e, acima de tudo, por ele (nas entrevistas,e nas conversas de divulgação), você foi bem além do ser a atriz.
Por fim, Nanda, essa conquista poderá ser traduzida por um ponto de inflexão tão necessário para este momento da cultura e do audiovisual, enquanto segmentos que dão tanta identidade ao Brasil. Depois do mar de adversidades que todos passamos, no ofício honesto e produtivo de realizadores comprometidos, penso que chegamos ao momento de revelarmos - sobretudo, para os desinformados e desconfiados - que essa tal identidade é quem nos faz ricos e plurais, contextos suficientes para provarem nosso valor social e econômico. Com soberania, no duplo sentido. Assim, julgo que estamos prontos e maduros para o Oscar. E com ele calar a boca dos incrédulos e dos que agem na difusão odiosa sobre nosso trabalho.
Nanda, você nos deu o primeiro passo. Em todos os sentidos, a História foi resgatada e me parece garantida. E o destino lhe fez garantir esse estado. Por isso, siga com seu engajamento, agora, ainda mais reconhecida pelo mundo.
Recado final; o Recife multicultural lhe celebra e espera por você, em breve.
* Economista, produtor audiovisual e colunista desta Folha de PE.
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