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OPINIÃO

Férias em tempos pavlovianos

Ivan Pavlov, cientista Russo, ganhou o prêmio Nobel no início do século XX. Apesar de mais conhecido por suas contribuições para a psicologia, sua formação era de fisiologista e havia sido alçado ao título de ganhador do prêmio instituído por Alfred Nobel, a partir de seus estudos sobre os mecanismos biológicos da fisiologia do sistema digestório. 

A descoberta científica inovadora foi que aqueles órgãos estavam sob controle do sistema nervoso, entretanto, a descoberta colateral em sues trabalhos de pesquisa, por ele intuído como possível de lhe trazer fama, foi a investigação do que ele “batizou” como “reflexos incondicionais”: “seus cães salivavam e seus estômagos roncavam no momento em que percebiam que um experimento com comida estava para começar”, e esse aspecto da involuntariedade dos “reflexos incondicionais” foi a descoberta da razão para diversas reações psíquicas no ser humano. 

Desde o início do ano passado venho, gradativamente, me afastando de grupos de “WhatsApp” por diversos motivos, dentre os quais, os “reflexos incondicionados das pessoas em razão da polarização política”. 

Para que possam me entender, sou de uma época na qual troquei muitas cartas com pessoas diversas, inclusive missivas de amor, dos outros, pois fui, algumas vezes, instado por amigos para escrever mensagens poéticas e conquistadoras para beldades alheias. 

Bilhetinhos, poeminhas, haikais, foram enviados para conhecidas e desconhecidas, quase sempre refletindo meus amores e paixões guardadas em minha timidez juvenil, logo depois transformada em ousadia tardia. Creio que isso era “fakenews” amorosa que, bem ou mal, n’alguns casos deu certo, em muitos outros não. 

Essa breve digressão é para dizer que estou de férias, uma opção diferente de descanso, sem viagens, sem selfies, sem lugares nobres ou exóticos, tirei férias de “meu eu” em tempos de esvaziamento de sentidos de toda espécie. Nunca mais tinha descansado tanto, e esse descanso foi que me proporcionou a volta a escrever esse breve artigo.

Para além das propagandas políticas andei pelo Recife anonimamente, ora, como observador, ora com parte da paisagem da cidade, por lugares que outrora sempre me foram muito caros, pois construíram meu imaginário ao longo desses 58 anos. Vou contar apenas um deles, pois é o que interessa por agora. 

Foi numa terça-feira desse janeiro que resolvi passear por aí. Desço elevador ainda pensando no destino. Ao sair, algo me levou até a Rua Nova e Imperatriz, hoje um Recife velho, mas que me trazem memórias afetivas. Não bastando o caminho e o calor do trajeto, ainda caiu alguma chuva estranha para o mês. 

Chego ao meu destino, após calçadas ruins e sem mais qualquer alma ou vestígio de civilidade. Mente quem diz que caminhar pelo Recife é agradável, não é. Olho a Praça Maciel Pinheiro e a antiga casa de Clarisse Lispector, já quase na Rua do Aragão. Coincidentemente acabara de ler sua biografia. Parei para tomar uma água de coco.

Meu traje, com boné e óculos me deixou igual a outros que ali estavam. O conversa foi sobre o “Pix” para se pagar o coco e se ele seria taxado ou não. Coincidentemente, estava a acompanhar nos resquícios de grupos de “whatsapp” que ainda participo, os debates sobre “verdade ou mentiras” acerca da “taxação ou não do pix”. 

Mas, naquele momento, meu intuito era perceber a reação das pessoas ao meu redor, num ponto de venda de água de coco. No tema identifiquei muito mais equilíbrio na percepção do povo em relação ao que lhe impactaria, ali, naquela roda informal, que em qualquer grupo. 

Todos, absolutamente todos, sabiam que o Pix não seria taxado, mas que suas relações informais estariam sendo mostradas para o governo. Há uma certa liberdade na informalidade em que vimemos no Brasil e há, cada vez mais, uma desconfiança sincera, da maioria da população em relação a iniciativas governamentais de todo matiz ideológico e essa foi consolidada em mim, com a frase de uma senhora ao meu lado. 

“Meu filho, até meu cachorro, quando eu assovio para ele, na hora de colocar comida, balança o rabo e fica pulando, até que a comida seja colocada em sua cuia. Governo é assim, assovia muito, mas a cuia é pequena e só coloca ração pra gente. Quero distância dessa gente engravatada e toda limpinha que vive aí nos tik tok fazendo pantim de povo”.

Volto para casa e penso que as redes sociais estão provocando nas pessoas as reações almejadas por ditadores que utilizam as descobertas “pavlovianas” para interferir na realidade, ora querendo o protagonismo, ora querendo dizer o que deve e não deve ser dito, mas, enquanto ainda tivermos a privacidade de tomar uma água de coco, sem que ninguém saiba, ainda poderemos pensar em liberdade. 

Esse é o centro do debate através do qual as pessoas que ainda pensam terão que enfrentar. “The right to be alone”, de Brandeis nunca foi tão atual, num país tão tardio como o Brasil. Quanto menos governo, em tudo e em todos, melhor e mais livres seremos.


Advogado e especialista em Transformação Digital.

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