Lei municipal sobre violência de gênero: os efeitos negativos de uma boa intenção
A recente aprovação pela Câmara Municipal do Recife do Projeto de Lei nº 188/2023, que estabelece multas de até R$ 1 milhão para agressores de mulheres, reflete uma preocupação legítima e urgente com a necessidade de contínuo enfrentamento da violência de gênero. Os números de agressões aumentaram, em parte pela violência e misoginia endêmica no país, em parte, espera-se, porque as mulheres passaram a denunciar mais as agressões. No entanto, apesar da boa intenção, a legislação municipal tem potenciais efeitos negativos a comprometer sua eficácia, em prejuízo das próprias vítimas.
A lei prevê no inciso I, do art. 3º pena de proibição de o agressor contratar com o poder Público ou de receber benefícios, ou incentivos fiscais e creditícios. Essa proibição se estende às empresas das quais o agressor seja sócio majoritário. No Brasil, onde 90% das empresas têm perfil familiar, a penalidade pode gerar uma situação delicada: a própria vítima ou seus familiares podem ser sócios do agressor. Nesse caso, a penalidade recairia sobre pessoa jurídica que também pertence à mulher que se pretende proteger, resultando em sua própria penalização. Em vez de oferecer um mecanismo de proteção, a lei pode gerar efeito contrário à sua própria finalidade.
Essa previsão fere também princípio fundamental do direito penal: a intranscendência da pena, que determina que a punição por um crime não pode ultrapassar a pessoa do apenado. Ao penalizar uma empresa por conta da conduta individual de um sócio, a norma ignora a autonomia da pessoa jurídica e afeta diretamente outros sócios que nada têm a ver com o crime.
Outro problema da nova lei é a possível ineficiência da cominação de multas. Não há clareza se a penalidade será aplicada de acordo com a gravidade da infração, com a capacidade econômica do agressor ou com base em outros fatores. É verdade que a violência de gênero não se restringe às camadas mais vulneráveis da população e há agressões praticadas por homens com significativo poder econômico, mas o fato é que a maioria da população do Recife é de baixa renda e a maioria das agressões reportadas atinge estrato da população com rendimentos pouco maiores que o salário mínimo. Assim, imputar multas com valores iniciais de mil reais quando boa parte dos agressores não terá condições de pagar pode se tornar uma política pública ineficiente, que vai movimentar a máquina, imputar gastos para o executivo, sem que haja efetiva probabilidade de recuperar os valores dos agressores multados.
Por outro lado, o impacto financeiro dessa penalidade pode ter um efeito colateral preocupante. Em muitos casos, a renda do agressor é essencial para o sustento da família. A imposição de uma multa excessiva pode levar a vítima a evitar a denúncia por medo de agravar sua situação econômica e a de seus filhos.
A lei também não esclarece o âmbito de competência do município. Não é possível identificar se o procedimento administrativo será instaurado em relação aos residentes no município, às agressões praticadas no município ou àquelas reportadas aos órgãos municipais. Há grave potencial de conflito federativo caso cada Município do Estado resolve editar uma norma semelhante.
Embora os municípios tenham autonomia para legislar sobre temas de interesse local, a imposição de sanções por crimes é competência exclusiva da União (artigo 22, inciso I, da Constituição). Ao prever multas administrativas a indivíduos exclusivamente em razão de condutas tipificadas como crimes, pode-se entender que a lei municipal ultrapassa sua esfera de atuação, invadindo a competência federal.
Violência de gênero é inaceitável e deve ser o centro das políticas públicas. Os prejuízos são humanos, familiares, sociais, econômicos e de saúde pública. No entanto, as boas intenções devem ser examinadas à luz das suas consequências práticas.
A impunidade nos casos de violência de gênero não decorre da falta de leis, mas das dificuldades da investigação e do processo penal, com os inúmeros recursos disponíveis e a prescrição da punibilidade. A Lei Maria da Penha oferece um arcabouço jurídico robusto para punir os agressores e proteger as vítimas. É necessário garantir sua efetiva aplicação, fortalecer as instituições responsáveis pelo atendimento às mulheres, investir em políticas públicas de educação e acolher as crianças e mulheres de lares violentos.
A violência de gênero é um problema complexo, que envolve aspectos domésticos, familiares e sociais. Não será resolvida sem oferecer suporte real para a reconstrução da vida da vítima. O foco deve estar na prevenção, na educação das novas gerações e na garantia de que as mulheres tenham apoio emocional e financeiro para romper o ciclo da violência.
* Advogada.
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