Sáb, 27 de Dezembro

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opinião

Madalena. Ou o mercado continua belo

Sábado de Aleluia. Dia de espera. Tempo que Jesus ficou no túmulo. Aguardando ressurreição. Fé e salvação. Cedinho, acordo. Tomo café. Dia brando. Vou ao supermercado. Compra rápida. Caminho ao caixa.

- Tem bilhete de estacionamento? Ela pergunta. Apresento. Ela diz que o valor, R$ 27,00, é pequeno. Preciso passar no final do corredor para carimbar. Vou lá.

- O senhor tem nove minutos para sair. Consegue? Saí. Eles desacreditam dos idosos. Botei Tom Jobim no som. E saí por aí. Margeando o rio. Bailando a vida. Pensando. Essa é a diferença entre os super e os mercados. Os públicos. Mercados públicos. Como o da Encruzilhada. Onde eu levava Naida, minha mãe. Ou o da Madalena.
Que eu visitava. Quando trabalhei numa reputada empresa de tecnologia. Defronte.

Uma cidade, como o Recife, ou qualquer outra cidade digna, com corpo e alma. Não seria a cidade que é, se não existissem os mercados públicos. Mercado público não é só ponto comercial. Abrigo mercantil. É referência, história, cultura. Ponto de encontro, convite à conversa. Local para escutar música, tocar violão. E uma birita. Já tendo sido, na época em que permitido, ponto de venda de passarinho. Ou seja, sangue que circula nas veias da cidade. Oxigênio que ela respira.

No mercado público, ninguém lhe condena ao prazo fatal para retirar o carro no estacionamento: “Tem nove minutos. Consegue?”. Os idosos são silenciosos. Sabem pensar. Falam consigo mesmo. E, com a experiência nevada dos cabelos brancos, avaliam o cenário. Guardam, discrição, no museu da indignidade humana, o ataque covarde de Putin. A ignorância de Trump. Que assombra o mundo. Jogando o país no mercantilismo do século XVII. E o sr. Lula da Silva, que dá asilo a uma política, envolvida em corrupção. Sob pretexto de razão humanitária. Autorizando o uso de recurso público, avião da FAB, para transportá-la.

Mas, elevemos o nível das coisas. Ao voltar para casa, vi o livro de Ítalo Calvino, Assunto Encerrado. Está lá: “A lição é construir na arte e na vida. Banir o voluptuoso na vida e na arte. Concentrar a força de sua marca em cada tipo de obra. Todo fazer humano significa transformar o fogo de uma tensão existencial em atuação histórica. Fazer do sofrimento ou da felicidade privada, essas imagens de nossa morte, elementos de comunicação ou de metamorfose, forças de vida”. Ou seja, admirar o viver. Fazer parte dele verdadeiramente. Legitimamente. Transferindo valores do ser para o fazer. De modo que possamos olhar nossa assinatura. E sorrir com a inserção no mundo.       

Como diz Ítalo Calvino, não precisamos nos tornar escravos da linguagem. Picasso, por exemplo, viveu a cultura do passado e do presente por caminhos que, na literatura, foram do lírico ao épico. Ele disse tudo que se podia dizer do signo pictórico. Autobiograficamente. Segundo Ítalo Calvino, “o único homem, depois de Shakespeare, que expressou o mundo e a si próprio de maneira total.”

As linguagens servem para desocultar as coisas. Por sua vez, o escritor mexicano, Octavio Paz, escreveu que “a pedra da estátua, o vermelho da tela, a palavra do poema, não são pura e simplesmente pedra, cor e palavra”. Há algo que os transcende. Pontes que nos levam a outro sentir, a outro enlevo, a outro olhar. Abrindo outros significados indizíveis da linguagem.

É o que eu quero acentuar com a urbe e o mercado público. O mercado público e a urbe. O Recife e o mercado da Madalena. Ferido pelo fogo. Mas salvo das chamas pelo rigor dos fados. Permanecendo lá, onde sempre esteve. Intacto. Na memória afetiva dos recifenses, seus frequentadores. Ou simplesmente, no longe perto, seus admiradores.          
 

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