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Mito da caverna e o educador

Durante muitos anos, um professor de filosofia costuma repetir à exaustão o mito da caverna. Prisioneiros, acorrentados no subterrâneo, alumiados por uma fogueira, imaginam viver a única realidade possível: veem suas próprias sombras projetadas numa parede de pedra. Os sons chegam de um mundo externo, que é desconhecido. Essas são únicas impressões visuais e audíveis do grupo. Ou seja, vê-se apenas algo aparente. Não é possível alcançar o que é real e essencial para perceber os elementos ao redor. 
 
Esta é uma das metáforas mais elaboradas da filosofia, da história e da literatura. Platão, por meio de Sócrates – seu mentor em vida e protagonista das suas narrativas na ficção – redigiu-a em A República, um dos seus textos mais emblemáticos, para revelar a uma plêiade de interlocutores que o ser humano vive atado por anéis de ferro se a sua condição para perceber a verdade não ocorrer por meio do conhecimento. 
 
Um dia, um desses sujeitos é libertado. Sai de dentro das escarpas sombrias e conhece a luz do sol, as árvores, a fauna que vive embrenhada nas matas. Em seguida, traz a notícia aos demais: “estávamos enganados”, diz ele, “existe uma outra realidade - a verdadeira”. 
 
Há dúvidas quanto ao relato do homem que conheceu a liberdade. A única maneira pela qual todos podiam conhecê-la seria quebrando os grilhões que os amarram no interior da gruta. Mas, uma vez livre, o homem não consegue mais tornar a sua condição primária de prisioneiro. 
 
Fazendo um paralelo com a nossa modernidade, sempre imagino que o indivíduo liberto funciona como uma espécie de professor, que tenta iluminar o caminho para que os demais também possam acessar a verdade. Tenho bastante afinidade com a ideia de que todo educador tem o privilégio de já possuir sua lanterna, o que facilita a sua saída da caverna. 
 
Não é incomum que ocorram discussões em sala de aula em que valores entrem em um conflito aparentemente insolúvel. Acredito que o professor não tenha a função de se posicionar, mas apenas de trocar o foco: tirar a importância da discussão vazia e dar protagonismo à escuta que enxerga um outro ente diante de si, havendo uma troca por meio da qual ocorre a educação como fenômeno. 
 
Não há como formar um cidadão para o mundo sem que este consiga entender que O OUTRO não precisa carregar o peso do antagonismo. Somos sempre um OUTRO também, basta uma mudança de referencial. O resultado das aulas em que nos empenhamos a ouvir, mesmo aquilo que possa parecer absurdo pode ser positivo.  Não se trata de mudança de valores, afinal, a tarefa do educador não deve prezar por conteúdos, mas pelo estímulo ao debate.  Pensar valores não significa eleger valores, mas, sim, construir critérios para que os alunos se tornem cidadãos capazes de compreender a alteridade. 
 
Por isso, a educação focada em valores funciona como essa lanterna acesa que possibilita a formação integral do aluno, possibilitando que ele desenvolva um olhar para si e para o outro, de forma a compreender a multiplicidade de olhares. A consciência de que temos uma visão parcial do mundo é o maior passo em direção à formação de um ser humano dotado de capacidade para construir uma sociedade menos atravessada pela nocividade dos preconceitos. O perigo de uma história única é o perigo da parcialidade travestida de verdade, uma espécie de escuridão, que todo educador comprometido com a construção de valores precisa buscar iluminar tal qual a lanterna do prisioneiro liberto de Platão.



* Professora de sociologia, filosofia e Teoria do Conhecimento da ESB/RJ.

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