Sancho Pança, exemplar e atual
Em conversa com o amigo e sociólogo carioca Teodoro Buarque de Hollanda, uma questão colocada foi sobre a importância do lavrador Sancho Pança na história do Dom Quixote de la Mancha. Pelo que vimos, a melhor maneira de responder à questão seria falando sobre a entrada de Sancho Pança na cavalaria andante, sobre a sua família e sobre o ofício de escudeiro por ele exercido.
Logo de início, é bom saber que o fidalgo cavaleiro Dom Quixote, na sua Primeira Saída, ao se fazer armado na Ordem da Cavalaria Andante pelo Castelão, o responsável pela realização da cerimônia de oficialização, este mostrou, ao neófito nobre cavaleiro, a importância de ele admitir um escudeiro para lhe ajudar nas jornadas de aventuras, que isto tratava-se de uma providência necessária ao êxito do porvir.
Ao retornar para casa, devido a uns incidentes, certo dia o cavaleiro Dom Quixote conversa com um lavrador vizinho seu na aldeia em que viviam, um homem de bem (“se é que este título se pode dar a quem é pobre”), “mas de muito pouco sal na moleira”, de nome Sancho Pança, e lhe convence, com base em promessas, a tornar-se seu escudeiro, mesmo sem ele ter conhecimento e experiência nesse tipo de trabalho.
Quem é o cidadão Sancho Pança? Sancho faz parte do clã dos Panças, “conhecedores de vinho”, de quem herdou alguma habilidade no assunto. Bem-casado com Teresa Pança, tiveram dois filhos: Sanchico e Mari Sancha. Unida, a família entendia o contexto da época. Para Teresa Pança, “tanto mata a alegria súbita como a dor grande”, e, para Sancho, “nem tudo que reluz é ouro”.
Pois bem, firmado o acordo escuderil, Dom Quixote orienta Sancho Pança a se preparar para as novas tarefas. Com tudo pronto, “sem se despedirem, em uma noite, saíram do lugar sem que nenhuma pessoa visse”. Desse modo, o cavaleiro, montado no seu cavalo, o Rocinante, e o escudeiro, no seu jumento, davam início à Segunda Saída do Quixote, em busca de aventuras mundo afora.
Assim, nasceu afortunadamente o universal e inseparável par Dom Quixote e Sancho Pança, com seus contrapontos: o cavaleiro e o escudeiro; o alto e o baixo; o magro e o gordo; o letrado e o néscio; o nobre e o vulgar; o sério e o sarcástico; o frugal e o glutão; e, o mais importante e essencial para o sucesso dessa história, o diálogo bilateral entre os personagens, eixo e virtude do mais humano livro da literatura, que o nobel Vargas Llosa conceituou como “um canto à liberdade”.
Quis o destino que a primeira aventura do escudeiro Sancho Pança com Dom Quixote fosse a dos “moinhos de vento”, essa que se tornou a mais conhecida e iconográfica, entre todas, metáfora para uma infinidade de exemplos. Que batismo! Podemos dizer que foi o início da evolução da sapiência de Sancho. Como também gostam de dizer, do processo de socratização do personagem, que, passo a passo, vai diluindo a ideia de “pouco sal na moleira”.
No enredo, a mais destacada ação de Sancho Pança é a de quando ele se torna governador da ilha Baratária. O mesmo foi de uma grandeza exemplar. Escutou atentamente os conselhos de Dom Quixote, como o de que “procurasse descobrir a verdade entre as promessas e ofertas dos ricos, como por entre os soluços e importunidades do pobre”. Ao assumir o cargo, afirmou: “Governarei esta ilha respeitando direitos e não aceitando suborno”. Quando renunciou, disse: “Saindo nu como saio, não é necessário outro sinal para mostrar que governei como um anjo”. Na sua despedida, ele foi reconhecido e ovacionado pelos habitantes da ilha Baratária.
Em determinada ocasião, com peculiar engenhosidade, Sancho apelidou Dom Quixote de Cavaleiro da Triste Figura, título tão singular que virou segundo nome. Hoje, o Cavaleiro da Triste Figura é um nome universal, a tal ponto de, em muitos casos, ser aplicado para identificar o personagem natural em vez de usar o nome de origem, o do fidalgo transfigurado.
Eternamente fiel a Dom Quixote, Sancho Pança nunca lhe abandonou. Ficou junto dele até seus últimos momentos de vida. Sua comovente partida é considerada um dos mais belos finais de romance da literatura… e nesse final, disse Sancho Pança: “Não morra vossa mercê, meu senhor, mas tome meu conselho e viva muitos anos, porque a maior loucura que um homem pode fazer nesta vida é deixar-se morrer sem mais nem menos, sem que ninguém o mate, nem outras mãos o acabem que não as da melancolia”.
O fiel escudeiro Sancho Pança, que nos legou pensamentos como “O que os olhos não veem o coração não sente”, e “Diz-me com quem andas e te direi tu quem és”, neste momento deve estar comemorando os 420 anos de nascimento do seu amo Dom Quixote, o Cavaleiro da Triste Figura, através da imaginação dos leitores.
* Administrador de empresas (UFPE) e cervantista. Autor do livro “Sonho Impossível - O Recife e Cervantes” (2024).
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