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OPINIÃO

Um olhar outrora sobre o Recife

Descritos vislumbrantes sobre o Recife de outrora pelo poeta Bento Teixeira a respeito dos arrecifes de arenito como “a cinta de pedra inculta e viva”, barreira natural do mar azul de Pernambuco deslumbra o inquieto visitante ao ver a primeira paisagem do Recife. No Diário de Pero Lopes de Sousa (1532), a barra do arrecife, em pouco tempo, passou a ser chamada de “Ribeira do Mar dos Arrecifes dos Navios”, tornando-se uma minúscula povoação de mareantes e pescadores que se aglomeravam em torno da ermida de São Pedro Gonçalves, ora chamada pelos pescadores de CorpoSanto.  Recorro, mais uma vez, ao poeta Bento Teixeira, em descrição na sua Prosopopéia “um porto tão quieto e tão seguro, que para as curvas das naus serve de muro”, narrando o que seriam as origens humildes daquela povoação. Desse modo, protegido das fortes ondas do Atlântico pela muralha de arrecifes, o referido porto abrigava, além das caravelas, dezenas de outras embarcações, inclusive as famosas urcas que vinham da Europa para serem carregadas de centenas de caixas de açúcar.      

Assim era o Recife nos seus primeiros séculos - um porto acima de tudo para escoar as riquezas da sua terra - tamanha a produção dos seus engenhos de açúcar, conquanto viria a despertar o interesse da Companhia das Índias Ocidentais. Esta, ao armar uma grande esquadra, apresenta-se nas costas de Pernambuco, em 14 de fevereiro de 1630, dando início a ocupação holandesa nas terras de Pernambuco, escolhendo o Recife para a sede dos seus domínios para explorá-lo a respeito de  tudo que havia de riqueza na Capitania de Pernambuco. Diante das dificuldades apresentadas por Olinda, sobretudo quanto à sua defesa, na noite de 25 de novembro de 1631, resolveram os holandeses incendiar a cidade, a Nova Lusitânia, ardendo os seus notáveis edifícios e parte do seu casario.  Em 23 de janeiro de 1637, chega ao Brasil o conde João Maurício de Nassau (Siegen) celebrando-se um culto em ação de graças por sua chegada ao Recife. Ao longo de sua permanência, fora reconhecido como “um governador sábio, virtuoso e temente a Deus” (Barleus).

Um dos aspectos mais interessantes durante o seu governo foi o desenvolvimento cultural da colônia. Sob as suas ordens, drenaram-se os terrenos alagadiços através de canais, construíram-se pontes e palácios -  o Friburgo e o da Boa Vista -  em cujo entorno do primeiro, planeja o jardim tropical e o zoológico, para serem freqüentados pelos moradores da ilha, onde se promovem concertos musicais abertos ao público. Assim constrói uma nova cidade, a Mauritshuis (a cidade Maurícia), sob a traça dos arquitetos Pieter Post e Jacob van Campen.  

Os artistas trazidos por Nassau contribuíram, sobremaneira, para tornar conhecida a paisagem do Recife. Quadros, pintados por Frans Post, painéis, assinados por Albert Eckhout; mapas, produzidos por George Marcgrave,  contribuíram para a realização do  livro de Gaspar Barlaeus, além de outros artistas e cientistas que fizeram parte da comitiva do Conde, ainda hoje, testemunhando a importância daquele período de outrora com referências sobre a paisagem, os costumes, a biodiversidade e os tipos humanos que habitavam o Nordeste do Brasil. Tal produção cultural transforma àquela povoação acanhada do século XVI e início do século XVII, após a expulsão dos batavos, em uma próspera e cobiçada povoação, cujas antigas feições haviam ficado entre as linhas do passado.  

A ampliação do comércio de exportação dos produtos da Colônia para outros continentes e a importação de especiarias da Europa e da África para o Nordeste do Brasil, colaboraram para o financiamento da safra dos senhores rurais locais, surgindo a cidade do Recife com uma nova classe social voltada para o comércio, logo após a restauração pernambucana: os mascates. A riqueza imediata e contínua dos mascates transformou o Recife em um local efervescente de comércio, criando entre os moradores da terra de Olinda e os comerciantes do Recife uma certa rivalidade. Tal progresso é refletido em dezenas de novas construções no final do século XVII, como exemplos a igreja de Nossa Senhora da Penha (1655), a monumental Madre de Deus (1672), o Convento do Carmo (1667), a notável capela dos irmãos terceiros de São Francisco, a Capela Dourada (1696), além de receber o foro de Vila de Santo Antônio, do Recife (em 1709).  

Posteriormente, em 1808, com a abertura dos portos a todas as nações amigas pelo Príncipe Regente D. João, o Recife alcança expressivo movimento em seu porto e em seus recantos naturais, sendo a sua paisagem retratada e descrita por centenas de viajantes que por aqui passaram. Em 5 de dezembro de 1823, através de Carta Imperial, o Recife recebe os foros de cidade e, logo depois, em 1827, através do Conselho Geral, é elevada a Capital da Província.  

No decorrer da separação de Olinda, são anexadas ao Recife, a partir de 1843, as freguesias do Poço da Panela e da Boa Vista e, mais tarde, as freguesias de São Pedro Gonçalves, Santo Antônio, São José, Afogados, Várzea e tantas outras, ampliando, assim, a sua área urbana - embelezando-se e conquistando a admiração de numerosos viajantes estrangeiros. Ratificando a importância dessa época, afirma Leonardo Dantas Silva: “vão tornando-se freqüente os depoimentos de viajantes estrangeiros sobre o Recife, de modo que podemos reconstituir os ambientes, o espaço urbano; também os costumes, a vida familiar, as festas e os hábitos da cidade, baseados nessas descrições”.

Viajantes como Louis-François de Tollenare - que escreveu sobre os banhos coletivos das famílias no Rio Capibaribe; ou o escritor Gonçalves Dias - que afirmou: “O Recife é a Veneza Americana transportada, boiando sobre as águas.....”; ou o poeta Castro Alves - que ao visitar o Recife recitou: “Dormindo imenso ao luar, com os olhos quase cerrados, com os lábios quase a falar. Do braço o clarim, o punho no sabre extenso, de pedra, Recife imenso, que rasga o peito do mar”. O vislumbre era de todos. O encanto de tudo.  

Estritamente unido ao mar e às águas dos rios que lhe fazem companhia, além dos poetas e escritores, inúmeros foram os artistas, fotógrafos e os gravadores, cujas emoções, deram-na cores e vida as mais diversas paisagens retratadas da bela cidade do Recife.  Assim, encontrava-se, pois, o Recife, até o século XIX, uma cidade barroca, admitindo o Neoclassicismo com as suas centenárias e divinas igrejas a triunfarem sobre os telhados dos sobrados, erigidos ora às margens dos rios, ora às margens do mar. Encontrava-se, o Recife,  também, questionando a modernidade e aqueles homens que viriam logo mais, desprovidos, muitos deles, de um olhar outrora, revelando e afirmando-lhes o Recife ser uma cidade inesquecível e singular, inclusive podendo continuar sendo aos dias de hoje.  


* Arquiteto, membro do CEHM e do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano, professor titular da UFPE.

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