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Rio de Janeiro

Órgãos com HIV: Justiça concede liberdade a sócios e funcionários do laboratório PCS

Há dois meses o PCS Lab Saleme foi interditado pela Vigilância Sanitária. Empresa pede liberação do local para dar outra destinação, já que não tem interesse em continuar com as atividades

Casos de infecção pelo HIV após transplantes no Rio não tem precedentes na história do país.Casos de infecção pelo HIV após transplantes no Rio não tem precedentes na história do país. - Foto: Unsplash

Em julgamento nesta terça-feira, a 6ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio decidiu soltar Matheus Sales Teixeira Bandoli Vieira e Walter Vieira, sócios do laboratório PCS Labs Saleme — que está no centro do escândalo dos transplantes com órgãos infectados com HIV.

Os desembargadores ainda decidiram estender o habeas corpus aos funcionários Ivanilson Fernandes dos Santos e Jacqueline Iris Bacellar.

Eles estavam presos preventivamente desde outubro, quando o Tribunal de Justiça do Rio aceitou a denúncia e os tornou réus por associação criminosa, lesão corporal e falsidade ideológica. Dois outros funcionários continuam presos: Cleber de Oliveira dos Santos e Adriana Vargas dos Anjos.

Laboratório muda versão sobre erro

O laboratório de patologia PCS Labs Saleme apresentou, na última semana, sua defesa nos processos internos da Secretaria estadual de Saúde (SES) que culminaram na interdição da empresa, com sede em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense.

No documento de 60 páginas, o laboratório mudou a versão do que pode ter ocasionado na infecção por HIV de seis pacientes transplantados: invés de erro humano causado por funcionários, agora o estabelecimento alega que o problema pode ter sido a "janela imunológica" da infecção nos doares.

A defesa também diz que o erro em apenas dois exames está "dentro do limite da aceitabilidade".

O estabelecimento está no centro do escândalo que culminou na denúncia do Ministério Público de sócios e funcionários do laboratório por associação criminosa, lesão corporal grave e falsidade ideológica.

Em paralelo ao processo criminal e de investigações administrativas, a empresa busca desinterditar o prédio de sua sede em Nova Iguaçu.

O local foi fechado pela Vigilância Sanitária estadual há dois meses após a descoberta dos laudos errados.

Segundo as investigações do Ministério Público e da Polícia Civil do Rio, os erros aconteceram porque os sócios do laboratório queriam economizar.

Por isso, teriam ordenado que os funcionários deixassem de fazer diariamente o controle de qualidade no equipamento que realizava os exames de HIV.

O PCS sempre negou essa versão. Em depoimento, o sócio Walter Vieira afirmou que o problema no resultado dos dois laudos foi "exclusivamente" por falha humana.

Ele ainda apontou que o erro teria sido causados por funcionários: o primeiro exame teria sido emitido errado pela falta da checagem do equipamento, enquanto o segundo por um erro de digitação no sistema.

Mas na defesa apresentada pelo laboratório no fim de novembro, a explicação é outra. Os advogados agora dizem que os erros nos exames podem ter sido causados durante a "janela imunológica do HIV" — tempo entre a pessoa ter contato com o vírus até ele ser perceptível nos exames.

De acordo com o laboratório, "durante essa fase, o resultado do exame pode dar falso não reagente, ou seja, resultado não reagente mesmo em uma pessoa que está infectada".

No entanto, o Programa de Transplantes do Rio pediu ao Hemorio analisar as amostras de sangue dos doadores assim que foi notificado da possibilidade da infecção por HIV nas cirurgias em setembro e outubro. Nos dois casos a contraprova deu positiva. Em um deles, inclusive, havia alta carga viral.

'Dentro do limite de aceitabilidade'

Ainda em sua defesa, o PCS alega que começou a prestar serviço para a rede pública antes mesmo da criação do Sistema Único de Saúde e tem um "longo histórico de exames realizados com sucesso".

Contratada via licitação no fim de 2023, a empresa atendia a 11 unidades da rede estadual de Saúde — entre elas o Programa Estadual de Transplantes (PET).

Até o início de setembro, quando o serviço ao PET foi suspenso após a notificação do primeiro caso de transmissão de HIV, o laboratório realizou 286 exames de HIV de doadores de órgãos.

Na defesa entregue à SES na semana passada, o PCS diz que os dois exames errados em universo de "quase 300 laudos elaborados, é totalmente compatível com o que é encontrado na literatura sobre o tema, em que uma margem de erro de 0,6% é considerada dentro do limite da aceitabilidade nos resultados de exames laboratoriais".

No documento, o laboratório alega ainda que "a atividade laboratorial não constitui uma ciência exata, pois sujeita a fatores aleatórios, que, por vezes, até mesmo, independem da vontade do profissional, sendo externo à conduta".

Esse é outro ponto que contradiz o que o laboratório havia informado publicamente durante as primeiras semanas de investigação.

Em uma nota publicada no site da empresa, o PCS destaca que "não é aceitável que dois doadores, cujo órgãos foram transplantados para seis receptores, tenham tido resultados de HIV falso-negativos".

Anna Caryna Cabral, professora de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Universidade Estadual do Rio (UERJ), explica que os exames atuais para detecção do vírus HIV são chamados de 4ª geração e foram aprimorados para reduzir essa janela imunológica.

— A chance de ter um falso negativo é mínima. Os testes têm uma sensibilidade muito alta. Então esse período de janela imunológica cada vez mais precocemente dá para você detectar a infecção pelo vírus. Só que qualquer teste laboratorial precisa da participação do profissional, controle de qualidade, validade dos testes. É preciso um conjunto de segmentos para você poder liberar um exame de HIV — explica Caryna.

Fiscalização no IECAC

O primeiro caso de infecção começou a ser investigado em 10 setembro. Dias depois depois, em 1º de outubro, o PET foi notificado que poderia ter um segundo laudo com erro.

Com a comprovação da falha após a contraprova, a Vigilância Sanitária estadual fez vistorias em dois locais de funcionamento do laboratório: a sede, em Nova Iguaçu, e na filial no Instituto Estadual de Cardiologia Aloysio de Castro (IECAC) — que atendia a pedidos de exames do hospital de do PET.

De acordo com a defesa do PCS, na cidade da Baixada Fluminense o local foi considerado "satisfatório" pelos fiscais.

No entanto, no IECAC a inspeção encontrou 39 irregularidades, entre elas ambientes sujos, com presença de insetos mortos e formigas em todas as bancadas.

Também foram encontradas amostras com tubos “embalados no papel da solicitação médica, sem vedação adequada ou sem tampa de vedação, permitindo o extravasamento do sangue coletado”.

O laboratório alega, no entanto, que as inconformidades foram causadas pela falta de manutenção do próprio IECAC, onde funcionava a filial: "ou seja, o laboratório foi responsabilizado por determinadas não conformidades, porém, sem ter ingerência administrativa e técnica sobre as tais, expiando pelos atos ou omissões de outrem".

"A prestação dos serviços laboratoriais eram prestados em espaço destinado previamente pelo hospital, cuja manutenção e limpeza ficavam a cargo deste último. O espaço já vinha equipado, com instalação de equipamentos de refrigeração de responsabilidade também do hospital. O laboratório basicamente apenas prestava o serviço, não geria as condições e conservação do ambiente hospitalar", diz trecho da defesa.

Na defesa, a empresa ainda nega que os problemas de embalagem das amostras também foi causado pelo governo estadual e que, por diversas vezes, alertou sobre os problemas em e-mails enviados à Central de Transplantes.

Ao fim, a empresa ainda pede a desinterdição da sede de Nova Iguaçu alegando que quer dar outra destinação ao imóvel, já que os sócios teriam decidido não retomar os trabalhos do laboratório.

Procurada, a defesa do PCS não se manifestou. A secretaria de Saúde rebateu as alegações do PCS Labs Saleme.

Em nota, diz que "de acordo com o contrato, as adequações estruturais para a execução do serviço de análises clínicas eram atribuição do laboratório."

A SES ainda afirma que "o prestador de serviços tinha autonomia para recusar o recebimento de amostras que estivessem fora das especificações ideais" e a interdição da "sede do laboratório se deve ao fato de o laboratório não ter apresentado a documentação solicitada pela Vigilância Sanitária em inspeção realizada no dia 4 de outubro."

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