Os entes federativos brasileiros têm mesmo autonomia?
A Constituição define o Brasil como sendo uma República Federativa, composta por entes que gozariam de autonomia, onde o poder seria descentralizado, distribuído entre União, Estados e Municípios.
Em que pese a literalidade desse ponto específico da Constituição, considerando-se a estrutura dessa declarada Federação, traçada na própria Carta Magna, seriam mesmo autônomos todos os entes federativos?
Em linhas gerais, autonomia é ter os meios para se manter, orçamentária e materialmente, além do poder de se auto-organizar, autogerir e autodeterminar.
Entretanto, seja no campo orçamentário, quanto no âmbito administrativo e no tocante à competência para legislar, há uma concentração de poder quase absoluta na União, em detrimento de Estados e Municípios, que, em grande parte, ora sofrem interferência, ora são dependentes e até mesmo submissos à União.
Conforme os termos da Constituição que os declara autônomos, paradoxalmente, Estados e Municípios não podem legislar sobre diversos temas, alguns deles diretamente relacionados a questões das quais devem cuidar, como, por exemplo, regras de direito penal, que guardam íntima relação com as políticas públicas atinentes à promoção da segurança pública.
Ora, como um ente federativo pode ser efetivo em tema de segurança pública quando não pode conceber regras em conformidade com o grau de criminalidade que enfrenta localmente e precisa se submeter a um padrão normativo geral, como se todos os recantos do país fossem exatamente iguais?
Como não há nada tão ruim que não possa piorar, o atual governo quer concentrar ainda mais poder, na medida em que está propondo uma PEC, criando um (claramente inconstitucional) “Sistema Único de Segurança Pública”, que colocará a União em posição de mando e de sobreposição frente aos Estados, usurpando-lhe relevante parcela de sua competência, em franca violação ao nosso (já frágil) pacto federativo.
Mas não é só.
Passando o olhar para a seara tributária, os superpoderes da União frente a Estados e Municípios não são diferentes.
Alguém duvida?
O que dizer, então, da competência da União para legislar sobre normas gerais em matéria tributária, que limitam a competência regulatória de Estados e Municípios acerca dos tributos que lhes cabem?
O que falar, também, das restrições, impostas a Estados e Municípios pela União, que limitam a concessão de benefícios fiscais, a pretexto de evitar o que se chama vulgarmente de “guerras fiscais”, mas que, em verdade, são instrumentos de redução da carga tributária, que servem para estimular o empreendedorismo, o desenvolvimento e a justiça fiscal?
Por outro lado, de que adianta se dizer na Constituição que os Estados e Municípios têm competência para se organizarem administrativamente se esses entes são obrigados, por normas de caráter nacional, a seguirem a lei de diretrizes básicas da educação, a se integrarem ao sistema único de saúde, a obedecerem modelos licitatórios e regimes de contratação, seja para obter financiamentos, escolher fornecedores ou selecionar servidores, além de serem forçados a respeitar estabilidades funcionais, a praticar pisos vencimentais e a pagar salário mínimo nacional, dentre outras limitações de ordem geral que os impedem de tratar das questões a seu cargo com necessária especificidade?
Não bastassem as normas que os impedem de ser realmente autônomos, Estados e Município, não poucas vezes, sofrem intervenções nas esferas de seus poderes e competências, também, pelas vias judiciais, a exemplo da ordem proferida pelo Supremo Tribunal Federal proibindo a polícia do Rio de Janeiro de decidir, de acordo com as suas próprias diretrizes, como e quando realizar operações nas favelas cariocas, notoriamente dominadas pelo crime organizado.
Que autonomia é essa que um Ente Federativo não tem meios de decidir, exercer e defender a própria competência, a ponto de ser forçado a se sujeitar a algo tão claramente ofensivo aos seus deveres-poderes e danoso à sociedade local, por imposição de um tribunal superior federal, no bojo de uma ação judicial intentada por um partido político?
A autonomia dos Entes Federativos brasileiros não é real, é uma ficção cheia de contradições e bolsões autoritários, que afasta o país da democracia, ante a concentração de poder que aqui se verifica, a facilitar os arroubos totalitários daqueles que têm essa vertente em seu íntimo e se vêem investidos de posições de mando, em quaisquer dos três poderes republicanos.
O nosso país precisa de uma reforma libertadora e profunda, que cure as suas incoerências, impeça o arbítrio e descentralize o poder, para que todos os Entes Federativos efetivamente tenham autonomia, cumpram os seus deveres e sejam realmente responsáveis por aquilo que diz respeito ao povo que vive em seus territórios, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos, onde a autonomia de cada ente federativo, nos âmbitos executivo, legislativo e judiciário, é concreta e guiada pelos interesses, cultura, escolhas e necessidades dos cidadãos de cada localidade.
Brasília não pode continuar a ser “dona” do Brasil, muito menos da vida dos brasileiros, pois não existe democracia nem desenvolvimento onde há concentração e sobreposição de poderes.
*Sócio do GCTMA Advogados, Procurador aposentado do Estado de Pernambuco, Conselheiro de Administração/IBGC
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