'Overtourism' desafia destinos famosos no pós-pandemia, que tentam absorver excessos com restrições
Somente no primeiro trimestre de 2023, estima-se que mais de 235 milhões de pessoas viajaram internacionalmente, mais que o dobro do mesmo período de 2022
"Turistas, fiquem longe!", dizem algumas placas espalhadas por Maui, condado havaiano que recentemente sofreu com intensas queimadas florestais. A repulsa momentânea por viajantes nesta ilha de 164 mil habitantes é justificada: pouco mais de uma centena de pessoas morreram nos incêndios, número que pode aumentar enquanto as buscas pelos desaparecidos continuam. Os problemas relacionados ao turismo na região, contudo, não vêm de hoje e são parte de um quadro que afeta não apenas o Havaí, mas outros destinos mundialmente famosos e visitados por milhões de pessoas anualmente: o "overtourism", ou turismo em massa.
Somente no primeiro trimestre de 2023, estima-se que mais de 235 milhões de turistas viajaram internacionalmente, mais que o dobro do mesmo período de 2022, segundo dados da Organização Mundial de Turismo (OMT). O número representa 80% dos níveis pré-pandemia, demonstrando "a capacidade única" do setor de se recuperar, disse o secretário-geral da OMT, Zurab Pololikashvili, em maio.
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Com o reaquecimento do setor, definir o conceito de excessos em turismo não é tão fácil quanto parece. Não se trata apenas da quantidade de turistas que determinado lugar recebe, mas de algo que causa uma mudança permanente no estilo de vida dos que ali residem.
— O "overtourism" tem a ver com a concentração no espaço, mas também uma concentração no tempo, tão extensiva que se torna uma constante para alguns lugares — explica ao Globoba coordenadora do Laboratório de Estudos Regionais do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), Rita Cruz.
Uma consequência negativa do trânsito intenso de pessoas é a gentrificação das cidades, isto é, quando a população de renda mais baixa é "expulsa" dos centros urbanos para a periferia devido à alta dos preços e a competição pelo espaço com os turistas. Outro problema veio com os aplicativos de hospedagem, como o AirBnb, já que muitos deixam de alugar o seu imóvel de maneira convencional para entrar no processo de "plataformização", visando um ganho maior.
— Toda cidade tem um limite para receber um número de turistas — diz o professor Vitor de Pieri, do Instituto de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), ao GLOBO. — Se ele é ultrapassado, há uma série de prejuízos para a população local, como o econômico, social, as questões ambientais, o lixo. Tudo acaba impactando a vida das pessoas que lá vivem.
No caso do Havaí, que recebeu, em 2022, mais de 9,2 milhões de visitantes — 2,9 milhões apenas em Maui, com um retorno de US$ 5,82 bilhões (R$ 28 bilhões), segundo o Departamento de Turismo do estado —, há uma crise habitacional instaurada há anos. Enquanto resorts, mansões de celebridades e condomínios de luxo dominam cada vez mais o espaço, a população local é forçada a se deslocar para áreas distantes, afugentada por preços exorbitantes e especulação imobiliária.
Altamente dependente do turismo, o arquipélago foi profundamente afetado durante a pandemia de Covid-19. Em 2020, o número de visitantes anuais caiu para pouco mais de 2,7 milhões, 74% a menos do que o ano anterior — que, por sua vez, havia batido o recorde de mais de 10 milhões de turistas. Antes da pandemia, entretanto, a população — grande parte empregada no setor hoteleiro — já se mostrava insatisfeita, protestando por melhores salários e contra a construção de estabelecimentos turísticos em locais sagrados e em cidades predominantemente agrícolas.
Agora, após os incêndios que destruíram mais de mil hectares de terras, o turismo novamente se equilibra em uma balança que põe, lado a lado, a necessidade de reconstrução, subsidiada pelo setor, e o ressentimento de moradores sem direito ao luto privado — enquanto veem visitantes nadando nas mesmas águas que amigos e familiares perderam as vidas.
Medidas 'antiturismo'
Apesar de sofrer com o turismo em massa, os números do Havaí ainda são relativamente baixos quando comparados com outros destinos famosos — sobretudo europeus, onde governos já tomam providências para absorver os "excessos" e respeitar a capacidade de carga das cidades.
Com um dos destinos mais visitados do mundo, a França — que no primeiro trimestre superou em 26% os números pré-pandêmicos de turistas internacionais, segundo a OMT —, já adotou uma série de medidas. Entre as principais, está o estímulo à visita a novas áreas, já que 80% de toda sua atividade turística se concentra em apenas 20% do território.
Outras propostas foram adotadas em cidades que sofrem do mesmo problema, como Londres, no Reino Unido. Lá, o governo criou uma lei para regulamentar o aluguel de curto prazo, tornando necessários registro e o cumprimento de requisitos de saúde e segurança. Já na Grécia, o governo vai limitar o número de visitas à Acrópole (apenas 20 mil ao dia), um dos principais pontos turísticos da cidade de Atenas.
Outras, como Palma, na ilha espanhola de Maiorca, e Amsterdã, na Holanda, já limitam a quantidade de cruzeiros que podem aportar diariamente na cidade. O governo holandês também já implantou um imposto turístico, tem desestimulado despedidas de solteiros, reduziu os horários de fechamentos de bares em certos pontos da cidade e proibiu o uso de maconha (no país, é permitido o uso recreativo desde 1976) em algumas ruas do centro.
Há também Barcelona, uma das mais afetadas pelo fenômeno, que, além das oficiais, também passou a adotar medidas informalmente. A mais recente foi a proibição de se sentar desacompanhado em alguns estabelecimentos comerciais, indo na contramão de um costume local.
Turismofobia x turismo consciente
Da mais rigorosa à mais branda, as medidas contra o "overtourism" são, no geral, voltadas à qualidade de vida do morador local. Porém, por conta dos transtornos causados, muitas vezes o avesso à indústria se torna tão grande que nativos acabam desenvolvendo o que os especialistas chamam de "turismofobia".
Como em Maui, moradores de Veneza, na Itália, e Bruges, na Bélgica, também clamam que turistas evitem suas cidades, alegando que eles não zelam pelas estruturas e que estão cada vez menos interessados nas atrações culturais. Patrimônios Mundiais da Unesco, ambas temem entrar na lista dos destinos em perigo devido ao turismo em massa (em julho, a organização chegou a recomendar que Veneza fosse incluída na classificação, por considerar as medidas tomadas pelo governo italiano "insuficientes" até então).
Para o professor Luiz Trigo, da Escola de Artes, Ciência e Humanidades da USP, a fobia não é generalizada, mas voltada a um turismo mal planejado e, em muitos casos, "predatório". No caso havaiano, ele explica que a preocupação é mais pontual, por turistas possivelmente atrapalhando os esforços de resgates.
— A grande maioria quer receber turistas, mas não quer qualquer um, quer um turista consciente — diz.
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'Monocultura do turismo'
Não é por acaso que países europeus são os mais afetados pelo turismo em excesso. Acordos como o de Schengen, assinado nos anos 1990, que flexionam o controle das fronteiras, somados a uma vasta gama de atrativos, mobilidade urbana, segurança e outros aspectos, contribuem para um "turismo consolidado".
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Mas mesmo com medidas restritivas locais e a implantação, pela União Europeia, de uma taxa de entrada para visitantes da partir do ano que vem, esses destinos não temem impactos econômicos ou "represália" dos viajantes, explica Pieri:
— Onde está a História da Idade Média? Da Segunda Guerra Mundial? São vários os patrimônios materiais e imateriais. Eles nunca vão deixar de receber turistas — observa.
Menos afetados, países do Hemisfério Sul também têm uma maior dependência econômica do setor, fator que opera como um freio nos questionamentos sobre um processo de "overtourism". Com exceção dos países caribenhos — que, juntos, receberam cerca de 28,3 milhões de visitantes em 2022, segundo a Organização de Turismo do Caribe (CTO) —, o fenômeno não é um assunto em pauta na região, segundo Cruz.
Porém, apesar das medidas tomadas pelas cidades afetadas e as apostas no "turismo sustentável", há poucas perspectivas de grandes mudanças no quadro. Para a professora da USP, uma forma de contornar os problemas é que as autoridades ouçam suas populações locais, com conselhos municipais que possam debater junto à comunidade estratégias para minimizar os efeitos indesejados do turismo. Mas não é uma solução de curto prazo, ela ressalta.
— Como é que você controla o fluxo de turistas no mundo globalizado, que incentiva as pessoas a viajar? Em um continente que você tem uma classe média que viaja muito? — questiona. — Essas localidades já cultivavam o que a gente chama de "monocultura do turismo", mudar isso é algo extremamente complexo.