Palestinos, no Brasil, falam do luto e da angústia de ter familiares sob bombas e escombros
Em Brasília, médico tenta contato com filhos e netos em Gaza que quase morreram em bombardeio
O médico Ahmad Shehada, de 58 anos, recebeu a notícia mais recente da filha na quarta-feira: “Estamos bem.” Foi uma mensagem curta, que veio de algum ponto do sul de Gaza, onde ela, o marido e os filhos buscam abrigo das bombas.
— Estar bem significa que estão vivos — diz o médico.
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Radicado há 15 anos no Brasil, Shehada, que vive em Brasília, tem quatro filhos, de 20 a 33 anos, e cinco netos, de 1 a 8 anos, na Faixa de Gaza. A comunicação é difícil, com o constante blecaute às redes de telefonia e internet do enclave. E seus filhos dependem da solidariedade de quem não teve de deixar a própria casa, como eles, para carregar seus celulares.
— Eles arriscam a vida para procurar um vizinho que não tenha tido sua casa bombardeada, como a deles, e com eletricidade para carregar o celular. Às vezes, fico dias sem contato— diz o médico ao GLOBO. — Eles fugiram para o sul da Faixa de Gaza, pois a casa deles foi destruída. Por um milagre, estão vivos. Mas não sabemos até quando.
Sequência de perdas
Shehada nasceu na Cidade de Gaza, no Hospital Árabe al-Ahli, atingido há três semanas. Seus pais vieram de uma cidade que desapareceu do mapa. Com a formação de Israel, em 1948, Jaffa, onde nasceram, foi unida a Tel Aviv. Foi quando os Shehada se mudaram para o enclave agora invadido pelas forças israelenses, e onde mais de 11 mil pessoas, segundo o Ministério da Saúde de Gaza, controlado pelo Hamas, morreram desde o início da guerra.
Como outros palestinos no Brasil, com parentes e amigos em Gaza, o médico acompanha cada desdobramento da guerra pelo noticiário e por informações de compatriotas. Seus filhos nasceram na Bósnia, onde Shehada viveu antes de imigrar para o Brasil. Sem cidadania brasileira, eles não estão na lista do Itamaraty para repatriação. A Bósnia também não está entre os países que conseguiram retirar seus cidadãos de Gaza.
— Pedi ajuda do governo brasileiro. Me disseram que iriam avaliar, mas não tive retorno. Agora estou tentando com o embaixador da Bósnia em Ramallah, mas não é um país com muita força — diz ele, que comanda o Instituto Brasil-Palestina (Ibraspal).
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Segundo o Itamaraty, até o fim do ano passado, 6 mil brasileiros viviam nos territórios palestinos. A Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal) estima que cerca de 60 mil palestinos e descendentes morem no Brasil.
Maynara Nafe faz parte desse grupo. Aos 21 anos, ela já conhece a dor de perder um parente na guerra. O primo foi alvejado pelas costas pelo Exército israelense na Cisjordânia, quando participava de um protesto, há mais de uma semana. Ela ainda não teve tempo para processar o luto, diante de todas as atividades relacionadas à guerra que desenvolve na Fepal.
Desde 7 de outubro, sua família tenta contatar os parentes diariamente. Alguns, nascidos no Brasil, como ela, voltaram a viver nos territórios em 2010, a maior parte na Cisjordânia.
Dormir com véu
Nas localidades mais próximas dos assentamentos de colonos israelenses, autoridades detectaram aumento da violência.
— Eles têm se alimentado do que plantam, pois uma simples ida ao mercado pode fazer com que nunca mais voltem pra casa. Minhas tias dormem com véu, pois a qualquer momento alguém pode invadir a casa — conta.
Os familiares da médica Mayra Housein, de 28 anos, enfrentam situação similar. Uma preocupação é com um primo ativista pela independência palestina que tem atuação reconhecida no território. A médica também teme nunca poder conhecer a terra natal de seu avô.
As brasileiras de origem palestina compartilham do mesmo medo: ter a comunicação com suas famílias completamente impossibilitada. O receio vem de relatos sobre sinais de chips cortados e blecautes de energia.
Elas também citam a apreensão com a violência crescente contra a população de árabes e descendentes no Brasil. Estudo da USP, no ano passado, mostrou que a maioria das vítimas de islamofobia no país são mulheres, 92% por violência verbal. Ativa nas redes sociais, Maynara Nafe conta que as agressões pelo Instagram aumentaram desde o começo da guerra.