Pandemia implode sistema de testes, e Alemanha e França reimpõem bloqueios
Restrições mais duras estavam fora do cardápio até agora porque os hospitais estavam sob controle e a curva de mortes vinha controlada
"Temos que agir rápido, antes que as pessoas comecem a morrer em grandes números." A frase dita nesta quarta (28) por um dos mais respeitados virologistas do mundo, o belga Peter Piot, resume bem o atual estado de ânimo da Europa.
Confrontadas com um crescimento incontrolável de novos casos de Covid-19, as duas principais potências europeias, Alemanha e França, voltaram a pronunciar a palavra que preferiam esquecer: 'lockdown'.
Ou, na versão segunda fase, "bloqueio parcial": fechamento de parte dos estabelecimentos, pelo prazo de um mês, reavaliável depois de 15 dias.
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Restrições mais duras estavam fora do cardápio até agora porque os hospitais estavam sob controle e a curva de mortes vinha controlada, mesmo com um número de novos casos recorde.
A sirene disparou quando a velocidade de transmissão ultrapassou a capacidade dos governos de rastrear e isolar contatos. Na França, por exemplo, a infraestrutura de testes e rastreamento funcionava bem quando o número de novos casos diários era 5.000 por dia. Nesta semana, eles beiram 50 mil por dia.
Além disso, hospitais começam a sentir a pressão aumentando, dizem governantes de vários países, e confirma a ECDC (agência para doenças infecciosas da UE) em seu comunicado de risco mais recente.
A ocupação ainda é bem menor que a da primeira fase da crise -na Espanha, por exemplo, 49 novos pacientes para cada 100 mil habitantes foram para a UTI em abril, taxa dez vezes maior que a registrada há 15 dias-, mas as equipes de saúde estão desfalcadas e exaustas.
A Holanda já começou a transportar para a Alemanha pacientes das cidades mais afetadas, e a França atingiu quase metade da capacidade de suas UTIs. Na Bélgica, vagas para doentes graves podem se esgotar em duas semanas se o número de internações mantiver o ritmo atual.
E mesmo que a taxa de mortalidade dos internados tenha caído à metade, como mostram relatórios recentes de hospitais europeus, cada novo paciente de Covid-19 ocupa médicos e enfermeiros que deixam de tratar outras doenças graves, disse Piot, que é consultor especial da UE e dirige a Faculdade de Higiene e Medicina Tropical de Londres.
"Sem contar que há muitos sobreviventes que sofrem consequências durante muitos meses, como posso atestar por experiência própria", afirmou o virologista, que em maio deste ano relatou o impacto da doença em sua própria saúde.
Tanto na Alemanha quanto na França, escolas continuarão abertas, com medidas de distanciamento físico e higiene. O diagnóstico é que interromper aulas sacrifica de forma grave os mais pobres.
Nos dois países, restaurantes, cafés e bares poderão fazer apenas entregas, e cinemas, teatros, academias de ginástica e outros locais de aglomeração serão fechados -na França, o bloqueio começa nesta sexta (30) e, na Alemanha, na segunda (2).
Os governos pediram que os moradores evitem sair de casa desnecessariamente e limitaram o número de pessoas que podem se reunir. No caso da França, reuniões privadas são proibidas. Na Alemanha, devem ser restritas a no máximo duas famílias e dez pessoas.
Mercados e farmácias seguem abertos, e, na Alemanha, outras lojas, empresas e cabeleireiros também, com precauções contra o contágio. O governo francês disse que guichês públicos, cemitérios e indústrias continuarão funcionando, e deve detalhar nesta quinta como o bloqueio parcial afetará o comércio.
O presidente da França, Emmanuel Macron, afirmou que as fronteiras internas da União Europeia ficarão abertas, mas pessoas de fora do bloco só poderão entrar em casos restritos e com teste negativo para o novo coronavírus.
Mencionando o risco do bloqueio para economias já debilitadas, os governos anunciaram programas de ajuda a empresas e trabalhadores afetados pela nova paralisação. Na Alemanha, o custo será de até 10 bilhões de euros (cerca de R$ 66 bilhões) neste mês de semibloqueio.
Um dos países com menores índices de casos e mortes, tanto em toda a pandemia quanto na segunda fase, a Alemanha acabou entrando na lista dos "muito preocupantes" da ECDC por causa da alta na contaminação de idosos.
Com novos casos dobrando a cada semana, a chanceler Angela Merkel apontou risco para os hospitais. A ocupação de UTIs está abaixo de 10%, mas no ritmo atual de crescimento as vagas para pacientes graves se esgotariam antes do final do ano.
Quanto mais cedo o país agir, "mais tempo ganharemos até as férias de Natal", afirmou Merkel aos chefes dos 16 estados que, em reunião nesta quarta, concordaram com as novas restrições.
No Reino Unido, a outra potência europeia fora do bloco da UE, o governo adotou bloqueios por região, mas o Sage (Grupo de Aconselhamento Científico para Emergências) sugere a adoção de restrições mais duras. Projeções apresentadas pelo grupo nesta quarta apontam o risco de uma proporção maior de mortes nesse rebote da pandemia.
Nesta quarta, os principais chefes do bloco europeu não pouparam adjetivos em seus comunicados. "A situação do coronavírus é muito séria; é desconcertante. Todos os dados da ECDC apontam para uma propagação muito forte em todo o continente", disse a presidente da Comissão Europeia (Poder Executivo da UE), Ursula von der Leyen.
"No espaço de apenas algumas semanas, a situação passou de preocupante a alarmante", escreveu o presidente do Conselho Europeu (que reúne os líderes dos 27 países-membros), Charles Michel. "Precisamos evitar uma tragédia."
Segundo Piot, agir rapidamente com restrições é imprescindível, mas terá pouco efeito se as pessoas não seguirem as orientações. "Tudo depende de comportamento. Pesquisas mostram que só 65% das pessoas na Europa seguem as normas de usar máscaras; deveríamos atingir o nível de Singapura, de 95%", afirma.
Ele também afirmou que ao final dos semibloqueios será preciso evitar uma abertura muito rápida e precoce, como a que aconteceu no verão. O virologista também observou que, ainda que tenham escopo e prazo limitados, as novas restrições prejudicam o planejamento de pessoas e empresas.
A forma mais promissora de voltar à vida normal, segundo Piot, será um imunizante, eficaz e disponível para todos. Ainda assim, ele diz estar "muito preocupado": "Cerca de 25% dos europeus afirmam que não vão se vacinar, porque não confiam na vacina. Comunicação será fundamental".