Paralisia facial hereditária: brasileiros participam de estudo inédito que revela mutação causadora
Após 27 anos de esforços, malformação congênita foi ligada a alterações genéticas específicas por meio da análise de 14 famílias com a doença
Dois cientistas brasileiros fazem parte de um time internacional de pesquisadores que encontrou de forma inédita uma mutação relacionada à paralisia facial congênita hereditária, um tipo de malformação rara que leva o bebê a nascer com perda da movimentação e da sensibilidade de músculos da face. O estudo que detalha a descoberta foi publicado nesta quinta-feira na revista científica Nature Genetics, uma das mais prestigiosas na área.
A ideia do trabalho teve início há 27 anos, ainda em 1996, quando cientistas holandeses investigaram 20 pessoas com o diagnóstico na mesma família e localizaram alterações em uma região genética do cromossomo 3. Na época, eles mapearam 25 potenciais genes que poderiam carregar uma mutação que seria associada à doença.
Porém, mais de duas décadas depois, algo que até então imaginava-se que seria mais simples tornou-se um desafio. Isso porque nenhum dos genes identificados foi ligado com sucesso ao diagnóstico. Foi então que uma equipe de pesquisadores de diversos lugares se juntou para analisar 14 famílias com a paralisia, uma delas brasileira.
Entre eles, nomes da Universidade de Harvard, de Yale, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), da Escola de Medicina do Mount Sinai e do Instituto Nacional para Pesquisa do Genoma Humano, todos nos Estados Unidos. Do Brasil, participaram os médicos Salmo Raskin, diretor do Laboratório Genetika, em Curitiba, e Mário Teruo Sato, professor de oftalmologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Leia também
• Morre Sue Johanson, aos 93 anos, educadora sexual que apresentou programa de TV no Brasil
• Brasil registra 155 mil empregos formais em maio
• Lula diz que cobrou Maduro para Venezuela quitar dívida bilionária com o Brasil
Após uma extensa análise dos pacientes, comparando aqueles com e sem a paralisia, eles confirmaram que a região do cromossomo 3 estava de fato ligada à doença, mas descobriram que as alterações não estavam em nenhum dos genes mapeados, e sim em localizações de fora dos genes que regulam as suas funções.
— Um gene é uma sequência do DNA que dá origem a uma proteína. No nosso DNA, 1% é composto por genes (exoma), e o resto por regiões que regulam suas funções. No início, diziam que essa parte de fora era até “lixo genético”, mas recentemente descobrimos que esses outros 99% na verdade têm funções muito importantes. Existem geneticistas que consideram até mesmo mais importante que os próprios genes — explica Raskin, um dos autores do estudo e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica.
Eles observaram que as variantes genéticas estavam situadas próximas a um gene chamado GATA2, e regulavam a sua função, acentuando ou silenciando a sua produção. Esse gene atua em mecanismos críticos no desenvolvimento embrionário, um deles sendo a produção de neurônios motores branquiais faciais. São eles que dão origem ao nervo facial, responsável pelo estímulo nervoso que chega aos músculos e fazem a expressão do rosto.
— Houve trabalhos anteriores que sequenciaram o GATA2 sem encontrar nada, e chegaram a concluir que ele não estaria envolvido. Mas agora sabemos que o gene está sim relacionado, mas de uma forma diferente. Não é uma alteração nele, mas sim numa região que leva ao seu mau funcionamento. Uma região que fica a cerca de 20 mil bases nitrogenadas de distância — diz Raskin.
No caso da família brasileira, por exemplo, foram identificadas 26 mil bases nitrogenadas (partes do DNA) duplicadas na região, o que desregulou a produção do gene GATA2. Com isso, a formação dos neurônios foi afetada, e o indivíduo desenvolveu a paralisia. O geneticista explica que, nos pacientes com o diagnóstico, o número dessas células motores varia entre 280 e 1.680, enquanto o ideal é uma quantidade que vai de 5.030 a 8.700.
Além disso, que, por se tratar de uma mutação dominante, o estudo mostrou que apenas um dos genitores ter a alteração já é suficiente para uma chance de 50% de o filho nascer com a paralisia. O trabalho envolveu ainda camundongos geneticamente modificados para apresentarem a disfunção no GATA2, o que confirmou a hipótese.
O especialista conta que esse entendimento sobre o papel das regiões do DNA que regulam os genes, anteriormente descartadas, é algo novo na ciência, por isso levou quase três décadas para que o trabalho iniciado pela equipe da Holanda fosse concluído.
— Durante quase duas décadas o foco da ciência foi nos genes. Não estava errado, isso esclareceu a causa de milhares de doenças genéticas, mas chegamos num momento em que boa parte do que ainda precisa ser respondido não vai ser encontrado ali. Por isso, nos últimos cinco anos, houve essa mudança de foco — explica.
Isso é importante, conta, pois pode ajudar a ciência a desvendar doenças que têm um componente ambiental aliado a um genético, mas que não há mudanças nos genes conhecidas que explicam de forma completa o papel do DNA. É o caso, por exemplo, de diabetes, câncer, hipertensão arterial, obesidade, entre muitas outras.
No momento em que esses diagnósticos estão em tendência de alta ao redor do mundo, Raskin defende a importância desses estudos para a saúde pública, que podem encontrar nas regiões adjacentes a resposta.
Impactos da descoberta
O geneticista conta que a repercussão mais próxima do achado é permitir que, no futuro breve, casais que queiram ter filhos e tenham a doença, ou que tenham identificado a mutação em um teste genético, consigam reduzir o risco de passar a alteração para o bebê.
Isso porque poderão, por meio da fertilização in vitro e do teste genético do embrião, selecionar aquele que não possui as mutações ligadas à paralisia. — Antes não sabíamos o que testar no embrião. Agora sabemos, então é uma aplicação imediata — diz.
Já a longo prazo, é possível que sejam desenvolvidos tratamentos inéditos capazes de atenuar o problema. No horizonte, Raskin vislumbra até mesmo uma perspectiva de cura. Ainda que leve décadas, ele explica que o estudo deu o primeiro, e essencial, passo para que a ciência chegue até lá. Hoje não existe tratamento para a paralisia facial congênita hereditária.
— Em 1989, foi identificado o gene da fibrose cística. E agora, neste momento, o Brasil avalia a incorporação de um remédio no SUS que é baseado nessa alteração. Então foi cerca de três décadas, mas a descoberta levou a um tratamento. Sem a descoberta não tem por onde começar a busca uma terapia — afirma.