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Guerra

Parceria sob sanções: arsenais da Coreia do Norte estão ajudando a Rússia na guerra contra a Ucrânia

Russos passaram a usar armas norte-coreanos na ofensiva contra Kiev, enquanto o regime de Kim Jong-un já conta com o conhecimento de Moscou em suas empreitadas aeroespaciais

Líder da Coreia do Norte, Kim Jong Un, e presidente da Rússia, Vladimir Putin, apertam as mãos durante reunião no Cosmódromo de Vostochny, no Extremo Oriente russo Líder da Coreia do Norte, Kim Jong Un, e presidente da Rússia, Vladimir Putin, apertam as mãos durante reunião no Cosmódromo de Vostochny, no Extremo Oriente russo  - Foto: Vladimir Smirnov / Pool / AFP

Em meados de fevereiro, o Conflict Armament Research, um grupo que investiga o uso de armas ilegais em conflitos, publicou um relato sobre fragmentos de um tipo específico de míssil encontrado nos arredores de Kharkiv, cidade ucraniana que desde o início da invasão russa sofre bombardeios quase diários.

Os pedaços de metal retorcido de um suposto míssil do modelo KN-23 ou KN-24, detalhado em imagens, confirmaram a suspeita levantada desde meados de 2022 por governos ocidentais, a de que a Coreia do Norte está transferindo armas para os russos, violando uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, aprovada em 2006 com o aval da própria Rússia.

"O uso de mísseis norte-coreanos pela Rússia é mais uma demonstração de violação dos regimes globais de não proliferação para manter seus esforços de guerra na Ucrânia, depois de ter usado drones iranianos", escreveu o Conflict Armament Research, referindo-se aos drones Shahed, presentes em alguns dos mais intensos ataques contra cidades ucranianas.

Desde a chegada de Vladimir Putin ao poder, em 2000, Rússia e Coreia do Norte mantêm uma relação positiva, porém complexa — Putin visitou a capital norte-coreana em seu primeiro ano de governo e recebeu Kim Jong-il (morto em 2011) e Kim Jong-un em seu território. Ao mesmo tempo, o líder russo apoiou resoluções contra Pyongyang e adotou sanções internacionais, como as que estaria violando hoje.

Como escreve em artigo recente Andrei Lankov, diretor do site NK News, a Rússia, com exceção de raros projetos poucas vezes concretizados, jamais olhou de forma séria para a Coreia do Norte, um país que, de forma geral, era até ridicularizado como uma "ditadura oriental" por boa parte dos russos e da elite local.

A relação mudou com a invasão da Ucrânia, em fevereiro de 2022, que levou a uma revisão de paradigmas dentro do pensamento estratégico russo. E isso incluiu a Coreia do Norte.

O conflito se mostrou bem mais difícil do que previam comandantes e talvez o próprio Putin. As baixas e perdas de equipamentos foram consideráveis, e a indústria bélica russa começou a enfrentar dificuldades para suprir as linhas de frente. Sem aliados mais poderosos, como a China, dispostos a ajudar, e sob sanções, Moscou buscou inicialmente o Irã, que forneceu drones capazes de realizar ataques precisos, fossem os alvos legítimos ou não.

Ao longo de 2023, os russos conseguiram incrementar a capacidade de produção de armamentos, enquanto os ucranianos viam gargalos no apoio ocidental. Em paralelo, a busca de Moscou por novas fontes de armas continuou, e a Coreia do Norte, que investe mais de 30% de seu PIB em Defesa e parece não se preocupar com o cumprimento de sanções, parecia uma escolha óbvia.

Em julho do ano passado, o ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu, fez uma visita a Pyongyang, onde foi ciceroneado por Kim Jong-un em um salão onde estavam expostos alguns dos mais recentes armamentos locais, incluindo mísseis de curto alcance. Semanas depois, uma análise de imagens de satélite feita pelo Royal United Services Institute, um centro de estudos baseado no Reino Unido, mostrou viagens de navios do porto de Rajin, na Coreia do Norte, até Dunai, uma antiga base de submarinos soviética.

Em setembro, quando os carregamentos já estavam a todo vapor, Putin e Kim se encontraram no Leste russo, no Cosmódromo de Vostochny, e reafirmaram a parceria. Putin deve visitar a Coreia do Norte ainda este ano.

Em declarações à imprensa, Shin Won-sik, ministro da Defesa da Coreia do Sul, disse no mês passado que desde a reunião de setembro foram enviados cerca de 6.700 contêineres para a Rússia, com um número estimado de 3 milhões de munições de artilharia de 152 mm. Os EUA impuseram sanções a empresas ligadas à venda dos armamentos, mas isso não deve afetar a operação.

— Dada a fronteira entre Rússia e Coreia do Norte, será quase impossível para os Estados ocidentais impedirem as transferências enquanto Pyongyang ainda quiser cooperar com a Rússia — disse à CNN Ankit Panda, pesquisador do Fundo Carnegie para a Paz Internacional

Trincheiras e mísseis
Para o tipo de guerra de trincheiras que está sendo travada na Ucrânia, ter um suprimento constante de armas é um diferencial em ações defensivas ou ofensivas. Analistas apontam que praticamente todas as munições norte-coreanas podem ser utilizadas nos equipamentos russos, uma herança dos tempos de Guerra Fria.

Nos últimos dias de 2023, mísseis balísticos de curto alcance, como os KN-23, foram usados na violenta série de ataques lançada contra cidades ucranianas, deixando dezenas de civis mortos.

— Os mísseis norte-coreanos não darão vantagem qualitativa em relação ao que já existe nos arsenais russos. Sua maior vantagem é quantitativa, eles vão incrementar os estoques hoje decrescentes de mísseis russos e servir como linha adicional de suprimento — disse à CNN Joseph Dempsey, do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos.

Comida e carros de luxo
Como diplomatas e analistas vêm apontando nos últimos meses, essa é uma relação de mão dupla. Os russos precisam do arsenal de Pyongyang, e o regime de Kim Jong-un já recebe algo em troca. A começar pela exportação de alimentos, necessários para enfrentar a séria crise econômica vivida pelo país desde 2020-. Agências de inteligência relatam ainda o crescente envio de matériasprimas, peças para a indústria armamentista, além de dinheiro em espécie.

Em fevereiro, Putin deu a Kim uma limusine Aurus, de fabricação russa.

— Quando o líder da Coreia do Norte estava no Cosmódromo de Vostochny, ele olhou para esse carro. Putin o mostrou pessoalmente e, como muitas pessoas, Kim gostou desse carro — disse, no dia 20 de fevereiro, o secretário de Imprensa do Kremlin, Dmitry Peskov. — Então a decisão foi tomada [de presentear Kim com o veículo].

Além de alimentos à população e presentes de luxo ao "respeitado camarada”, Moscou reforçou a cooperação espacial: segundo a inteligência da Coreia do Sul, os norte-coreanos tiveram apoio da Rússia no lançamento bem-sucedido de um satélite de reconhecimento militar, em novembro.

Embora os russos não estejam interessados em participar do desenvolvimento de armas nucleares no país vizinho, seus cientistas estão, ainda de acordo com Seul, prestando assistência em projetos de mísseis balísticos intercontinentais, como o Hwasong-18. Há também, segundo agências de inteligência, planos para a modernização dos sistemas de defesa aérea e dos aviões de combate.

Algumas das aeronaves de Pyongyang são dos anos 1950, e os modelos mais modernos, como os MiG-29, foram comprados da União Soviética nos anos 1980. Em comparação, dois países próximos e considerados hostis, Japão e Coreia do Sul, têm frotas modernas, incluindo com o caça americano F-35 Lightning II, de quinta geração.

A guerra na Ucrânia deve servir para os norte-coreanos como um teste prático de suas armas, muitas vezes usadas apenas contra alvos de treinamento. Entender o funcionamento desse armamento contra sistemas ocidentais de defesa, incluindo os usados na Ucrânia, e sobre seu alcance, serão lições importantes para um país que, embora tenha uma grande força militar, há algumas décadas não entra em um combate de fato contra outra nação.

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