Parlamento de Israel votará projetos para restringir atuação de agência da ONU em Gaza e Cisjordânia
Comunidade internacional diz que, se aprovados, textos podem ter 'consequências devastadoras em uma situação humanitária já crítica'
O Parlamento israelense, o Knesset, vota, nesta segunda-feira (28), dois projetos de lei que visam impedir a Agência da ONU para Refugiados Palestinos no Oriente Médio (UNRWA) operar em Israel e restringir sua atuação na Cisjordânia e em Gaza, onde a crise humanitária se acentua à medida que a guerra contra o Hamas prossegue. Algumas autoridades internacionais e países, incluindo aliados do Estado judeu, como os EUA, manifestaram-se contrários às medidas. Se aprovadas, o fornecimento de alimentos, abrigo e assistência médica "seria interrompido", alertou a ONU.
A discussão ocorre poucos dias após a confirmação da UNRWA de que um funcionário da agência esteve envolvido no ataque terrorista do Hamas em 7 de outubro — azedando ainda mais uma relação intensamente conturbada. Muhammad Abu Attawi teria liderado o assassinato e sequestro de civis israelenses de um abrigo antiaéreo que fica na beira de uma estrada próxima ao kibutz Re'im, informou o jornal Times of Israel. Attawi estava empregado na agência desde julho de 2022, enquanto servia como comandante em um batalhão do grupo.
Um dos projetos de lei busca interromper por completo a atuação da UNRWA em Israel ao revogar uma negociação de 1967 — quando o Estado judeu ocupou a Cisjordânia e outros territórios em uma guerra com os estados árabes vizinhos —, que serve de base para suas atividades. Essa suspensão significaria o fim de seu trabalho no campo de refugiados Shoafat, pontuou o jornal israelense Haaretz. Ali, a UNRWA oferece serviços de limpeza, educação, saúde, e outros. O texto foi apresentado pelo parlamentar Boaz Bismuth, do partido Likud, e outros parlamentares.
O outro projeto visa revogar as isenções concedidas à agência, incluindo isenções fiscais, status diplomático e imunidade. E, o principal: proibiria qualquer agência governamental ou outra entidade que desempenhe funções públicas de manter contatos com a UNRWA ou qualquer representante da agência. A proposta (uma combinação de outros três projetos de lei) foi apresentada pelos parlamentares Ron Katz, do Yesh Atid; Dan Illouz, do Likud; e Yulia Malinvosky, do Israel Beiteinu.
— A recente revelação de que Mohammad Abu Attawi [...] liderou pessoalmente o massacre de civis no kibutz Re'im em 7 de outubro é uma confirmação chocante, mas nada surpreendente, do que Israel já sabia há muito tempo: a UNRWA é profundamente cúmplice do terror — disse Illouz, citado pelo Times of Israel, acrescentando: — Minha legislação visa acabar com essa exploração, desmantelando uma agência tóxica que sustenta o conflito em vez de resolvê-lo.
Em suma, sem coordenação com Israel, será quase impossível para a agência atuar na Cisjordânia ou em Gaza, já que o país não emitiria mais autorizações de entrada para esses territórios ou a coordenação com as Forças Armadas israelenses.
Gaza está sob um bloqueio marítimo, aéreo e terrestre, imposto por Israel e Egito desde 2007, além de um cerco israelense imposto após o ataque terrorista do Hamas em 7 de outubro. Assim, qualquer comboio humanitário que entra no enclave é submetido à rigorosa averiguação dos militares israelenses. A Cisjordânia, por sua vez, tem 60% do seu território sob controle direto de Israel, segundo os Acordos de Oslo assinados durante a década de 1990.
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Ao serem questionados sobre a pressão feita por parte da comunidade internacional, os autores dos projetos afirmaram ao jornal Times of Israel que os textos são necessários e justos. A lei deve ter o apoio dos 68 membros que integram a coalizão governista, composta principalmente por parlamentares de extrema direita, embora vários parlamentares da oposição também se manifestem favoráveis, informou o jornal.
— Após a aprovação do projeto de lei, a UNRWA poderá trabalhar em Gaza e na Cisjordânia, embora não possa operar em Israel — explicou um porta-voz do parlamentar Malinovsky ao Times of Israel na sexta-feira, afirmando que a fronteiras entre Israel, Gaza e Cisjordânia "serão fechadas" para esses agentes e ironizando que eles poderão "usar um paraquedas" para entrar nesses territórios.
Segundo a ONU, citada pela CNN, a aprovação dos textos significaria que 600 mil crianças apenas em Gaza perderiam "a única entidade capaz de reiniciar a educação — arriscando o destino de toda uma geração".
O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu pode vetar as legislações, mas não tomou quaisquer providências nesse âmbito, pontuou o Haaretz. A coalizão de seu governo é sustentada pela extrema direita. Em junho, os principais líderes dessa extrema direita — o ministro da Segurança Interna, Itamar Ben-Gvir, e o ministro das Finanças, Bezalel Smotrich — ameaçaram romper com o premier caso ele aceitasse uma proposta de cessar-fogo com o Hamas.
Comunidade internacional pressiona
Uma fonte afirmou ao jornal Haaretz que o premier israelense e seus ministros estão "presos em uma armadilha", já que Netanyahu "liderou uma campanha contra a UNRWA, mas sabe muito bem que esses são projetos de lei problemáticos que podem colocar Israel em apuros com a comunidade internacional".
— Ninguém sentado à mesa do gabinete quer assumir o desafio e ser pintado pelo público israelense, especialmente à direita, como um defensor da UNRWA — afirmou a fonte, afirmando que os projetos não são de membros patrocinados pelo governo e que "buscam desafiá-lo, com a crença de que Netanyahu não pode se dar ao luxo de sair publicamente e defender a UNRWA neste momento".
Em declaração conjunta divulgada no domingo, os ministros das Relações Exteriores do Canadá, Austrália, França, Japão, Coreia do Sul, Reino Unido e Alemanha, estes dois últimos, aliados de Israel, expressaram "sérias preocupações" sobre os projetos.
"A UNRWA fornece ajuda humanitária e serviços básicos essenciais e que salvam vidas aos refugiados palestinos em Gaza, Jerusalém Oriental, Cisjordânia e em toda a região. Sem o seu trabalho, a prestação de tal assistência e serviços, incluindo educação, assistência médica e distribuição de combustível em Gaza e na Cisjordânia, seria severamente prejudicada, se não impossível, com consequências devastadoras em uma situação humanitária já crítica e em rápida deterioração, particularmente no norte de Gaza", afirmaram os países no documento.
Washington, principal aliado e principal fornecedor de armas de Israel, também expressou preocupação com o impacto da legislação, informou o Times of Israel. Em carta a Yoav Gallant e a Ron Dermer, ministros da Defesa e de Assuntos Estratégicos, respectivamente, os secretários de Defesa Llyod Austin e de Estado Antony Blinken afirmaram que "a imposição de tais restrições devastaria a resposta humanitária de Gaza", assim como a prestação de serviços "vitais" a Jerusalém Oriental.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, disse que aprovar os projetos de lei seria uma "catástrofe". No início deste mês, Israel declarou o chefe da organização "persona non grata", ao afirmar que o mandatário não condenou "inequivocamente" o ataque balístico do Irã ao território no dia 1º de outubro. O chefe da diplomacia da União Europeia (UE), Josep Borrel, alertou que a aprovação teria "consequências desastrosas".
Tensão há décadas
A UNRWA fornece há décadas uma série de serviços sociais à população palestina no Líbano, na Síria, na Jordânia, na Cisjordânia ocupada e principalmente na Faixa de Gaza — altamente dependente de ajuda humanitária de organizações internacionais —, construindo e operando escolas, abrigos e clínicas médicas, gerando empregos e distribuindo água, alimentos e medicamentos. Em paralelo, mantém uma relação conturbada com Israel, que defende o fim de sua atuação no enclave palestino após o fim do conflito com o Hamas.
O mais recente atrito ocorreu em fevereiro deste ano, quando Israel acusou funcionários da UNRWA de terem participado do ataque terrorista do Hamas em outubro. A agência demitiu de imediato nove funcionários e presenciou uma debandada de financiadores, que suspenderam ou congelaram suas doações. Em abril, uma revisão independente encomendada pela ONU afirmou que Israel não apresentou evidências que sustentassem as alegações de que alguns dos funcionários da UNRWA são membros de organizações terroristas, mas não abordou a acusação de que parte deles teria participado dos ataques de 7 de outubro.
Israel questiona a atuação da agência, vinculada ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), e classifica seus métodos como antiquados, sobretudo pelo fato de ela oferecer o status de refugiado mesmo a palestinos que não estejam em campos de refugiados. A UNRWA emprega 13 mil pessoas em Gaza, sendo a maioria palestinos. Israel alega que mais de 10% de toda a equipe em Gaza tem laços com o terror.