Páscoa: tradição milenar que celebra mensagem de liberdade e transformação
Festividade une crenças e histórias do judaísmo e do cristianismo. Data ganha significações ainda mais fortes diante da pandemia do novo coronavírus.
Dizem as Escrituras que há milhares de anos, ao enfrentarem uma escassez de alimentos provocada pela seca, os descendentes de Abraão, chamados de hebreus, deixaram a terra onde viviam, no Oriente Médio, e migraram para o Egito.
Lá, eles contavam com a proteção de um parente, José, que era próximo do faraó. Até que se deram bem nos primeiros anos, mas, logo que José morreu, um novo faraó subiu ao trono e, vendo que os hebreus tornavam-se numerosos a cada geração, decidiu escravizá-los.
Algumas gerações mais tarde, em uma semana que marcava a chegada da primavera no hemisfério norte, Moisés, um filho de hebreus adotado pelo rei egípcio, libertou o povo israelita após abrir o Mar Vermelho por um milagre divino, permitindo o retorno à Terra Prometida, Canaã.
Centenas de anos depois, com os judeus reestabelecidos na área que correspondia a Canaã, àquela época dominada pelo Império Romano, Jesus, o Deus encarnado e concebido pela Virgem Maria por obra do Espírito Santo, peregrinava com seus discípulos entre as regiões da Galileia e da Judeia, operando milagres e pregando a “boa-nova” do Pai.
Pois, segundo contam as Escrituras cristãs, também foi em um equinócio de primavera que Jesus Cristo foi crucificado, ressuscitou “ao terceiro dia” e ascendeu ao Céu.
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As duas histórias são mais do que conhecidas. Atravessaram gerações e culturas por meio de uma longa tradição presente nas duas das maiores religiões do mundo: o judaísmo e o cristianismo. E são essas as histórias lembradas na Semana Santa cristã e na Pessakh (pronuncia-se “Pêssar”), a Páscoa judaica.
Além de relembrar episódios históricos e narrativas religiosas, a Páscoa é celebrada até hoje em cerimônias que remontam ao sentimento de libertação, no caso dos judeus, e à ideia de transformação espiritual, no caso dos cristãos.
Duas crenças que, de acordo com o professor Gilbraz Aragão, coordenador do Observatório das Religiões da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), unem as três principais religiões monoteístas, incluindo o islamismo - embora este último não celebre a ressurreição de Jesus e tenha apenas um dia para festejar a libertação dos hebreus.
Essas ideias também têm origem em denominações mais antigas, em especial o zoroastrismo e outros movimentos proféticos surgidos na Ásia entre 800 e 200 anos antes de Cristo.
“Trata-se de uma fé vinculada à luta histórica pela terra, com a sedentarização deflagrada pela agricultura, e à experiência de Deus como uma força dos céus que promete ‘a terra onde corre leite e mel’ e faz aliança para justiçar o povo e a pessoa que cumpre a lei de justiça e misericórdia”, explica.
“Os judeus celebram a Páscoa mais como libertação do Egito, e os cristãos, como a liberdade da alma frente às escravidões da vida, conforme testemunhado pela ressurreição de Cristo. E, para os muçulmanos, Deus livrou o profeta Jesus da crucificação e todos devem aguardar a ressurreição no fim dos tempos”.
Outra coincidência, nem um pouco casual, entre as celebrações judaica e cristã diz respeito à época do ano em que a saída dos hebreus e a morte de Cristo teriam ocorrido.
No hemisfério norte, o equinócio de primavera se dá na segunda quinzena de março e, por representar a “chegada” do Sol após o inverno, era celebrado antes mesmo das histórias narradas na Torá e na Bíblia, os livros sagrados de ambas as religiões.
“Os calendários com referências mais históricas das religiões proféticas foram construídos em cima das festas pagãs, que aludem mais aos fenômenos da natureza. Na Europa, o solstício de inverno, que lá acontece em dezembro, foi aproveitado na fixação da data do Natal, transformando o festival religioso do Deus-Sol na celebração do nascimento de Cristo. Assim também é a maior festa cristã: a Páscoa é o primeiro domingo após a primeira lua cheia depois da entrada do Sol em Áries, que é associado ao carneiro, o Agnus-Dei, o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, e à vitória de Cristo sobre a morte e o tempo”, conta o professor Gilbraz Aragão.
Sacerdote com a hóstia, pão sem fermento que, no catolicismo, representa o corpo de Cristo (Foto: Alfeu Tavares/Folha de Pernambuco)Transformação
Trazendo uma mensagem tão íntima quanto universal, o discurso da transformação espiritual, presente nas pregações cristãs sobre a Páscoa e a ressurreição de Jesus, é sempre adaptado aos desafios e sofrimentos do mundo em qualquer época. Não poderia ser diferente hoje, quando a data adquire uma significação mais forte diante da pandemia da Covid-19 e da crise econômica, social e humanitária gerada por ela.
E justo por causa do recente aumento nos números de casos e mortes provocadas pela doença, as celebrações devem ser realizadas a distância pelo segundo ano consecutivo. Com protocolos para limitação de horário e capacidade de fiéis dentro das igrejas, as congregações recorrem à tecnologia para alcançar as pessoas que permanecem em casa.
Assim será com os católicos. Neste Sábado de Aleluia, a vigília pascal na Catedral da Sé se dará a portas fechadas, pois acontece à noite, depois do pôr-do-sol, horário em que os templos não podem ser abertos. Já no Domingo de Páscoa, as missas nas paróquias serão realizadas até a partir das 16h, para que as igrejas fechem às 17h. Na Catedral, a missa começa às 9h. Todas as celebrações da Sé serão transmitidas nas redes sociais da Arquidiocese de Olinda e Recife.
Em mensagem encaminhada aos fiéis, o arcebispo dom Fernando Saburido disse que as celebrações, mesmo com restrições, serão “confortadoras” e “mais necessárias do que nunca”. “Servirão para transformar nossa noite em vigília, isto é, convocam-nos a nos manter de pé em atitude vigilante, confiante e amorosa. Em meio a tudo isso, podemos nos alegrar com tantas atitudes eminentemente pascais de solidariedade e gestos de comunhão”, afirmou.
O professor e engenheiro químico Iury Sousa e Silva, 32 anos, vai acompanhar tudo de casa. Depois de vivenciar a Quaresma, o período de 40 dias entre o Carnaval e a Semana Santa, o católico, que mora com a mulher em Jardim Atlântico, Olinda, diz que o momento requer reflexões “mais profundas” sobre a vida de Cristo.
Fazendo jejum de carne vermelha, uma tradição exercida em respeito à lembrança da crucificação, ele, mais uma vez, não participará do almoço de domingo com os familiares nem das cerimônias na paróquia.
“O dia da morte de Cristo (a Sexta-Feira da Paixão) é muito triste porque nossa esperança morreu. Mas, quando Jesus volta à vida, renasce com as nossas esperanças. E neste contexto de pandemia, falar de renovação e esperança é falar da Páscoa. Ou seja, antes o nosso mestre estava morto, agora ele revive”, reflete. “É muito complicado não ir à igreja porque a Semana Santa, para a gente, não é um feriado, é o ápice da fé católica”.
Católico, o engenheiro químico Iury Sousa e Silva, 32, acompanhará as celebrações de Páscoa em casa (Foto: Rubiane Gouveia/Cortesia)Entre os protestantes, o pastor Joel Bezerra, da 1ª Igreja Batista do Recife, localizada no bairro da Boa Vista, também adotará um modelo híbrido para se comunicar com a comunidade. No domingo, haverá dois cultos de Páscoa. O primeiro, às 10h, será realizado no templo, para número limitado de fiéis, e transmitido no YouTube. O segundo, que começa às 18h, será apenas on-line.
O religioso define os dois episódios que originaram a Páscoa como dois “marcos”. “O primeiro marco (a libertação dos hebreus) foi um pano de fundo para o mistério que Deus tinha e ia acontecer. E aconteceu. Jesus desceu entre nós e trouxe o perdão dos pecados, libertando o ser humano da maior escravidão”, declara. “Com a presença de Deus, mesmo nas circunstâncias difíceis, nós podemos ter alegria. E é o momento de ser solidário”.
Libertação
A libertação dos hebreus da escravidão no Egito também é lembrada em rituais cheios de simbologia. E até hoje os judeus celebram o episódio em reuniões feitas em família. Acostumado a passar o “Pessakh” com a mãe no Brasil, o paulista Camilo Zeipoune, 33, mora na cidade de Haifa, em Israel, onde faz o seminário para se formar rabino.
Por lá, a situação da pandemia é diferente, com mais da metade da população adulta vacinada, e, diferentemente de 2020, quando teve que participar de encontros virtuais, este ano, ele já sente, aos poucos, algum princípio de liberdade da Covid-19, podendo encontrar os amigos presencialmente.
Na Páscoa judaica, as comemorações duram uma semana e começaram na noite do sábado passado, terminando neste. Em geral, são organizados jantares com comidas típicas.
Camilo Zeitoune, 33, mora em Israel (Foto: Cortesia)“O ‘Pessakh’ é o dia em que o anjo da morte passou e matou os primogênitos do Egito, mas os hebreus foram poupados. Durante sete dias, comemos o Matzá, um pão sem fermento, porque, na hora em que passou o anjo da morte, não houve tempo para fermentar o pão. É um pão simples, só com água e farinha, para lembrar que fomos escravizados”, conta Camilo. O alimento serviu de base para a criação da hóstia, que, nas missas católicas, representa o corpo de Cristo.
Nas festas da Páscoa judaica, os participantes trocam presentes, cantam músicas e relembram a história do Êxodo. “O primeiro e o sétimo dias, ou os dois primeiros e os dois últimos dias fora de Israel, são os mais sagrados. Então, você vai à sinagoga. Aqui em Israel, todas as padarias são fechadas porque não se pode comer pão”, descreve o seminarista rabínico.
No Estado, as atividades da Federação Israelita de Pernambuco serão conduzidas de forma on-line. Coordenador de Comunicação da instituição, o professor de história e cultura judaicas Jáder Tachlitsky diz que “Pessakh”, termo hebraico que originou a palavra “Páscoa”, significa “passagem” ou “salto”.
“É uma história que aconteceu há mais de 3.500 anos e que, segundo a Torá, deve ser contada de geração a geração. E o intuito é relembrar o mal que significa a escravidão e que somos livres e temos que lutar por essa liberdade, não só para nós, judeus, mas para toda a humanidade”, explica.
Pensando no contexto da pandemia, Tachlitsky considera ainda que o momento atual, tal como na saída do Egito, também é de travessia.
“Toda a humanidade está tendo que enfrentar essa situação e deveria estar consciente da solidariedade. Cada ato que nós tomamos pode ter uma repercussão para a sociedade como um todo. O judaísmo trata muito da responsabilidade coletiva e se baseia no princípio de que a humanidade é parceira de Deus”, recorda.
Podcast FolhaPE: O significado da Páscoa: quem foi Jesus?

