Perspectivas 2024: Desafio americano e indústria voltada para defesa regem China sob Xi Jinping
Prioridade máxima do governo chinês no ano que vem é preparar-se para uma longa competição com os Estados Unidos, sem linha de chegada à vista
No próximo ano, deve se intensificar para a China o desafio que tem ocupado o centro das politicas do governo nos últimos anos: buscar um equilíbrio para encarar as dificuldades domesticas e as pressões externas. Sob a liderança mais ideológica de Xi Jinping, o Partido Comunista da China tornou-se mais intervencionista no plano interno e assertivo na arena internacional. A prioridade máxima é preparar-se para uma longa competição com os Estados Unidos, sem linha de chegada à vista.
Um ano após o fim abrupto da política de Covid zero, a economia ainda sofre para retomar o ritmo de crescimento esperado em meio a uma persistente crise de confiança motivada pelo intervencionismo do Estado, pela baixa do setor imobiliário e pelas turbulências do cenário externo, entre outros fatores. Um dado que ilustra a incerteza é que o investimento privado este ano manteve-se no mesmo nível de 2022, quando a economia estava semiparalisada pelas restrições da pandemia.
Entre os chineses de classes média e média/alta, tornou-se mais comum ouvir conversas sobre planos de deixar o país e reforçar a proteção contra eventuais turbulências. Nos primeiros nove meses do ano, a demanda por barras de ouro no país disparou, num aumento de 26% em relação ao mesmo período de 2022. Segundo o jornal “China Daily”, a maioria dos que buscam um ativo seguro contra possíveis intempéries é jovem: 91% dos que entraram na “corrida do ouro” têm entre 25 e 44 anos.
Para Barry Naughton, um dos mais respeitados especialistas do mundo em economia chinesa, a surpresa entre analistas com a relutância do governo em implementar politicas de estímulo perde de vista o que é a prioridade da liderança. O crescimento da economia a qualquer custo já não está no topo da lista como há alguns anos, diz. O foco principal é “responder ao desafio americano”, afirma, e isso se reflete numa politica industrial ampla voltada para a defesa contra dependências externas, sobretudo em novas tecnologias.
Leia também
• Putin lidera Rússia há 24 anos: relembre, em 24 tópicos, história de poder que ultrapassa fronteiras
• Estado do Maine bloqueia participação de Trump nas primárias locais
• Trump contra-ataca: Esperado segundo round de republicano contra Biden em 2024 desafia a democracia
Como a maioria dos especialistas estrangeiros, Naughton ficou impossibilitado de visitar a China enquanto vigorou a política de Covid zero. Ao voltar ao país, em setembro, sentiu um choque cultural, conta, ao ver consolidada a “mudança sistêmica” liderada por Xi Jinping. A estrutura de incentivos foi alterada para assegurar que os objetivos nacionais determinados pelo PC estejam integrados a todos os âmbitos da sociedade. Talvez seja exagero chamar de economia de guerra, mas as evidências não contradizem quem acha isso, diz Naughton, professor da Universidade da Califórnia.
– Muitas das politicas econômicas da China têm a ver com segurança e com o objetivo de deixar o país preparado para um conflito. A importação de minério de ferro e a produção de aço não diminuíram, embora a construção tenha caído 20%. Suponho que boa parte esteja indo para a indústria, mas não dá para saber ao certo.
Entre os eventos externos de 2024 com potencial para elevar a tensão, estão duas eleições. A primeira, logo no início do ano em Taiwan, irá definir a liderança do território autônomo que Pequim considera uma província rebelde e ameaça reunificar à força. A segunda, nos Estados Unidos, pode levar de volta à Casa Branca o imprevisível Donald Trump, que em sua passagem pela Presidência (2017-2021) deu a largada na política linha-dura em relação à China que jamais foi revertida. Taiwan é um dos pontos principais de tensão militar entre Pequim e Washington e esta eleição de 13 de janeiro está sendo considerada a mais importante desde a democratização do território, no fim dos anos 1990. As pesquisas mostram uma leve vantagem para os que ocupam atualmente o poder, Partido Democrático Progressista (PDP), que se aproximou dos EUA por considerar a China uma ameaça a Taiwan, embora não defenda a independência da ilha. A reeleição do PDP manteria o alto nível de hostilidade entre Taipé e Pequim, enquanto que o retorno à presidência do Partido Nacionalista (Kuomintang), mais conciliador, mudaria o cenário regional a favor da China.
Wang Huiyao, presidente do Centro para China e Globalização, com sede em Pequim, acredita que a reunificação é um processo natural, e por isso a eleição de janeiro não tem grande impacto a longo prazo. Os laços culturais e familiares entre os dois lados do estreito facilitam esse processo, que é alimentado por incentivos econômicos, diz Wang. Pesquisas mostram que a maioria dos taiwaneses prefere a manutenção do status quo, afirma ele, o que não significa reunificação, mas tampouco independência, o grande temor de Pequim.
– Chineses são muito práticos. A unificação traz um enorme beneficio econômico a Taiwan. Quem diria não a isso? – questiona Wang.
Caso o PDP mantenha-se no poder, o governo chinês deve continuar sua política dos últimos anos em relação a Taiwan, de coerção econômica e pressão militar calculada, mas para não provocar uma guerra para a qual não se sente preparado. O ultimo encontro entre Xi e o presidente dos EUA, Joe Biden, foi considerado positiva, mas seu efeito desestressante tende a ser temporário. O ano que se inicia será de campanha presidencial nos EUA, e uma das poucas previsões seguras é de que a retórica anti-China irá predominar.
A possível volta ao poder do incendiário Trump não assusta Wang. Embora reconheça que a temporada eleitoral inevitavelmente tornará o clima nos EUA ainda mais tóxico para a China, ele vê numa possível vitória de Trump até uma certa vantagem, já que ele é mais pragmático e se preocupa menos que os democratas com questões de direitos humanas, uma área de irritação constante nas relações.
Jude Blanchette, especialista em China no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, em Washington, acha que a China não será um grande assunto das eleições americanas. Muito pode mudar até a eleição de novembro de 2024, mas os principais temas serão domésticos, prevê.
– Os assuntos que mobilizam os EUA politicamente neste momento são Ucrânia 10%, Oriente Médio talvez 15%, o resto é doméstico, com as guerras culturais entre os dois partidos – diz Blanchette.
No campo diplomático, o novo ano começa com a estreia de um triunfo de Pequim em sua busca por parcerias na competição com o Ocidente. O novo Brics ampliado entra em vigor no primeiro dia do ano: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, os membros atuais, passam a ter no grupo Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, menos a Argentina, que foi aprovada mas deve ficar de fora por decisão de seu novo governo.
O poder econômico, continua a ser o motor da ascensão da China como potência global e é uma de suas principais ferramentas diplomáticas. Mas a forma como esse poder é direcionado dentro e fora do país mudou. Na última década sob a liderança de Xi Jinping, o país passou por uma “transformação sistêmica”, diz Barry Naughton, em que a tutelagem do PC sobre a economia e a sociedade tornou-se central no pensamento do governo, mesmo que isso tenha custo no crescimento.
– Nos acostumamos com uma China em que os interesses estão sempre alinhados com lucro e crescimento econômico. Essa China é coisa do passado – diz Naughton.