SAÚDE

Pesquisadores mapeiam cérebro da larva de mosca e dão passo para entender a mente humana

Façanha científica em um animal é considerada um passo importante para completar a arquitetura cerebral dos humanos

Mapa do cérebro da larva da mosca-das-frutas, com 3.016 neurônios e mais de meio milhão de conexões. Mapa do cérebro da larva da mosca-das-frutas, com 3.016 neurônios e mais de meio milhão de conexões.  - Foto: Divulgação/Universidades de Cambridge e Johns Hopkins

A humanidade só conseguiu mapear célula por célula três minúsculos sistemas nervosos com algumas centenas de neurônios: o do verme de laboratório Caenorhabditis elegans, o da larva do invertebrado marinho Platynereis dumerilii e o de um minúsculo animal que vive preso ao rochas rochas oceânicas, Ciona intestinalis.

Uma equipe chefiada pelo biólogo espanhol Albert Cardona e sua colega croata Marta Zlatic agora alcançaram uma façanha científica. o mapa do cérebro completo da larva da mosca-das-frutas, uma estrutura com 3.016 neurônios e 548 mil conexões entre eles.

— Multiplicamos por 10 o que havia sido conquistado até agora — comemora Cardona, do lendário Laboratório de Biologia Molecular de Cambridge (Reino Unido), cujos cientistas já ganharam uma dezena de prêmios Nobel.

O biólogo, nascido em Tarragona há 44 anos, explica a magnitude do progresso.

— Vamos imaginar que o metrô de uma cidade tenha 3.000 estações e cada uma delas esteja conectada a outras 200 — disse.

A complexidade do cérebro da larva da mosca-das-frutas, porém, não se comparara com a estrutura mais sofisticada da face da Terra: o cérebro humano, um órgão de um quilo e meio com 86 bilhões de neurônios.

— Três mil neurônios parecem muito poucos, mas essa larva é capaz de navegar por gradientes de luz ou odores, pode encontrar comida sozinha, tem memória de curto e longo prazo. É um animal muito autossuficiente — aponta Cardona.
 

O estudo foi foi publicado nesta quinta-feira na revista Science, uma vitrine para o que há de melhor na ciência mundial.

Quem começou a mapear o cérebro humano foi o espanhol Santiago Ramón y Cajal, em 1888. Com um microscópio rudimentar em seu laboratório em Barcelona, o pesquisador demonstrou que o órgão da mente não era uma massa difusa, como se pensava até então, mas estava organizado em células individuais: os neurônios.

Cajal iniciou então uma tarefa titânica, desenhando à mão com maestria cada estrutura cerebral, célula por célula, com suas conexões, que poeticamente chamou de “beijos”.

A equipe de Albert Cardona usou métodos mais sofisticados. Há doze anos, os cientistas removeram o sistema nervoso de uma larva de mosca da fruta com uma pinça. Eles o cortaram em cerca de 5.000 fatias ultrafinas e as observaram sob um microscópio eletrônico.

O biólogo desenvolveu um software que permite unir essas imagens com precisão — como um celular junta várias fotos em um único panorama — e navegar por esse volume tridimensional, como se fosse o Google Maps.

As aplicações de um mapa cerebral são inimagináveis. Cardona cita o trabalho de um colega de seu laboratório, o neurobiólogo Pedro Gómez Gálvez , um dos cientistas espanhóis que em 2018 anunciou a descoberta de novas formas geométricas: os escotóides , uma espécie de prismas retorcidos observados pela primeira vez em glândulas salivares das moscas da fruta.

Gómez Gálvez está comparando os cérebros inteiros de larvas normais com os de outras larvas que foram geneticamente modificadas para imitar os sintomas de Parkinson. Outros distúrbios pouco compreendidos – como autismo, esquizofrenia e epilepsia – surgem de um desvio do desenvolvimento típico do cérebro.

O físico americano Emerson Pugh deixou uma frase para a história antes de morrer em 1981: "Se o cérebro humano fosse tão simples que pudéssemos entendê-lo, seríamos tão simples que não o entenderíamos." É o paradoxo do cérebro, uma estrutura tão sofisticada que é incapaz de se imaginar.

Cardona, porém, está otimista. Ele acredita que obter um mapa do cérebro humano com suas conexões neurônio a neurônio – o chamado conectoma – é apenas uma questão de tempo.

— O cérebro do rato será feito nos próximos 10 ou 15 anos. A questão é quanto vai custar. Existem vários projetos propondo isso, mas estamos falando de algo entre 500 e 1 bilhão de dólares só para fazer o trabalho preliminar — calcula o biólogo. — E o cérebro humano exigirá uma quantidade absurda de recursos — acrescenta.

Cardona explica que seu colega Gregory Jefferis já está mapeando o cérebro da mosca adulta em Cambridge. Os resultados são esperados a partir do próximo ano. Outro alvo óbvio seria a abelha, com um milhão de neurônios.

— Temos que entrar no cérebro da abelha, porque ela tem a capacidade de falar e se lembrar de lugares específicos em quilômetros de paisagens. Como se faz? Como você explica para outra abelha como ir a um lugar? Tudo isso pode ser estudado se sua fiação neural for conhecida — diz Cardona.

O neurocientista Rafael Yuste, professor da Universidade de Columbia (EUA), considera o mapa do cérebro da larva “espetacular”. Esse pesquisador estava no laboratório do biólogo sul-africano Sydney Brenner, também em Cambridge, em 1985, quando essa equipe fez a primeira tentativa de mapear os 302 neurônios de Caenorhabditis elegans. Esse estudo tinha um título provocativo: A mente do verme .

Yuste lembra que aquele trabalho pioneiro era muito tradicional, "quase heróico", mas hoje é praticamente um processo industrial. Em sua opinião, o progresso em direção a cérebros mais complexos é “inexorável”.

Yuste é um dos promotores do futuro Spain Neurotech National Centre for Neurotechnology, em Madrid.

— É muito difícil fazer esses estudos, são necessárias equipes enormes, com muito investimento de tempo e trabalho. Por isso é importante coordenar financiamentos e esforços nacionais e internacionais em neurotecnologia. O mapeamento do conectoma do camundongo está sendo estudado em colaboração mundial — argumenta o professor.

O cérebro de um camundongo é um milhão de vezes maior que o de uma larva de mosca.

Albert Cardona diz que encontraram uma "surpresa" no cérebro da larva. Sua arquitetura se assemelha a redes neurais artificiais modernas, como ResNet, DenseNet e U-Net, usadas em sofisticados softwares de aprendizado de máquina.

— Nas redes neurais tradicionais, cada camada de neurônios se conecta apenas à seguinte. O cerne da questão são as conexões que pulam camadas. Essa é a raiz de suas habilidades excepcionais — explica Cardona.

O biólogo espanhol considera "incrível" o que esses seres são capazes de fazer com apenas 3.000 neurônios. Cardona lembra que as larvas da mosca-das-frutas, como muitos outros insetos, costumam ter uma vespa parasita em seu interior, como o monstro do filme Alien.

— A larva da mosca detecta e vai comer comida enriquecida em álcool, fruta fermentada, para medicar, porque esse álcool mata o parasita dentro dela — diz o pesquisador.

Cardona destaca a complexidade organizacional desses 3.000 neurônios. Além do salto de camada, existem conexões em loop, semelhantes às redes neurais artificiais LSTM, que são usadas em bilhões de computadores diariamente. O biólogo está confiante de que o cérebro da larva da mosca dará origem a novos sistemas de inteligência artificial, com aprendizado automático mais poderoso do que os atuais.

— Já existem cientistas da computação se inspirando nos circuitos cerebrais da nossa larva — comemora.

A longo prazo, o objetivo é muito mais ambicioso, como afirmou outro dos coautores do mapa, o engenheiro biomédico Joshua Vogelstein , da Universidade Johns Hopkins (EUA):

— Entender quem somos e como pensamos.

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