Câmara Federal

PL do aborto: projeto gera revolta e amplia debate sobre estupros contra mulheres no Brasil

PL equipara aborto realizado acima de 22 semanas de gestação ao crime de homicídio

Câmara Federal deve votar PL na próxima semanaCâmara Federal deve votar PL na próxima semana - Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil

A cada oito minutos, uma mulher é estuprada no Brasil, de acordo com dados do Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (Raseam).

É este mesmo país que, nesta semana, discute o Projeto de Lei nº 1.904/2024, que equipara o aborto realizado acima de 22 semanas (aproximadamente cinco meses) de gestação ao crime de homicídio.

Caso aprovado, até mesmo os abortos em vítimas de estupro serão considerados crime, se realizados após o período de gestação estipulado.

O pedido de urgência para a votação da proposta do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), na Câmara Federal, que pode tramitar diretamente no plenário, sem passar por discussão nas comissões, provocou debates.

No País, somente de janeiro a junho de 2023, 34 mil casos de estupro contra mulheres e meninas menores de 14 anos foram registrados. Os números são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

Estupro contra mulheresA cada oito minutos, uma mulher é estuprada no Brasil | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Em 2022, último ano analisado pelo Raseam, com dados do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, foram contabilizados 67.626 estupros contra mulheres.

Segundo o documento, naquele ano, 301.008 adolescentes ou jovens entre 15 a 19 anos tiveram filhos. Na faixa etária de 10 a 14 anos, o número é alarmante: 14.262 partos registrados.

O dado é preocupante, visto que o ato sexual com meninas de até 14 anos é considerado estupro de vulnerável pela legislação brasileira e que a gravidez indesejada pode ser uma consequência do crime.

Região mais populosa do Brasil, o Sudeste teve o maior número de ocorrências de estupro contra mulheres em 2022, com 22.917 casos. 

Em seguida, ficou a região Sul, com 14.812 ocorrências. Na sequência, Nordeste (14.165), Norte (8.060) e Centro-Oeste (7.672).

Estupro por regiãoRegistros de estupro por região brasileira | Fonte: Ministério da Justiça e da Segurança Pública, Dados Nacionais de Segurança Pública

Em Pernambuco, dados públicos da Secretaria de Defesa Social (SDS) apontam que, de janeiro a maio de 2024, foram registradas 841 ocorrências de estupro contra mulheres no Estado, contra 1.027 casos no mesmo período de 2023.

Quanto aos casos envolvendo crianças e adolescentes, na faixa etária de 0 a 17 anos, de ambos os sexos, Pernambuco contabilizou 644 vítimas nos cinco primeiros meses de 2024, contra 835 no mesmo período do ano passado, redução de 22,87%.

A Secretaria orienta que, ao ser identificado qualquer sinal de violência, abuso sexual ou estupro vitimando menores de idade, deve-se denunciar o crime na delegacia mais próxima.

"Outra orientação é comunicar o fato ao Conselho Tutelar, que também informará à delegacia. Denúncias sobre quaisquer tipos de crimes praticados contra crianças e adolescentes também podem ser feitas através do Disk 100 e pelo telefone da DPCA (81) 3184-3579", afirmou a SDS.

Os dados nacionais deste ano ainda não foram divulgados.

Entenda o PL 1.904/2024
Na última quarta-feira (12), a Câmara dos Deputados aprovou o pedido de urgência para o Projeto de Lei nº 1.904/2024, que equipara o aborto realizado acima de 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples.

Atualmente, não há, no Código Penal, um prazo máximo para o aborto legal. No Brasil, ele é permitido por lei em casos de estupro, de risco de vida à mulher e de anencefalia fetal (quando não há formação do cérebro do feto).

Se aprovado, o projeto proibirá o aborto até para essas situações, se realizado após o período.

Assistofilia fetal
A realização do aborto após a 22ª semana de gestação implica na utilização de uma técnica chamada assistolia fetal, que utiliza medicações para interromper os batimentos cardíacos do feto, antes de sua retirada do útero.

O procedimento é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para os casos de aborto acima de 20 semanas.

No entanto, em abril deste ano, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou uma resolução proibindo os médicos de realizarem o procedimento.

Na prática, isso impedia que a gestação resultante de estupro fosse interrompida nesse período, o que contraria a lei brasileira, que não estabelece limite máximo para o procedimento.

A resolução foi suspensa pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).

Nos bastidores da Câmara, aponta-se que a urgência na votação do PL seja uma reação da bancada evangélica ao ministro.

Arthur Lira, presidente da Câmara dos DeputadosArthur Lira pautou o requerimento na Câmara | Foto: Mariana Ramos/Câmara dos Deputados/Divulgação

O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), disse que o compromisso que fez foi apenas de pautar o requerimento de urgência do projeto, que contou com a assinatura de 32 deputados e teve votação adiada após repercussão.

"Nada é reação a nada. A bancada evangélica, cristã, católica tem essa pauta antiaborto na Casa. Não é novidade para ninguém. Eu apenas comuniquei no colégio de líderes que havia sido feito um pedido de votação de urgência de um projeto para se discutir o tema", disse o presidente da Câmara a jornalistas.

Ao O Globo, Lira disse que o texto não avançará sobre os casos previstos em lei, como gravidez decorrente de estupro, bebês anencéfalos e risco à vida da gestante.

Para isto, o texto original, feito pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), deve sofrer modificações até a votação do seu mérito, previsto para ocorrer na próxima semana.

"Se todo projeto fosse aprovado de acordo com o texto original, ele não precisava de relator. O que é permitido hoje na lei não será proibido, não acredito em apoio na Casa para isto. O que estamos tratando com este projeto é sobre a assistolia fetal para os demais casos, não previstos em lei. É necessário fazer esta discussão", afirmou Arthur Lira.

O propositor Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), uma das principais lideranças da Frente Parlamentar Evangélica, defende que o fato da lei não prever "limites gestacionais ao aborto" não significa que os legisladores que promulgaram o Código Penal tenham querido "estender a prática até o nono mês de gestação".

Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ)Deputado Sóstenes Cavalcante é o propositor do projeto | Foto: Leonardo Prado/Câmara dos Deputados/Divulgação

O parlamentar resiste à possibilidade de alterar o texto. "Se for necessário, incluímos no texto um aumento para a pena do estuprador também, mas discordo de mudança que atenue isto", afirmou Sóstenes ao Globo.

Penas
Atualmente, o aborto é proibido no Brasil, exceto nos casos de aborto legal (estupro, de risco de vida à mulher e de anencefalia fetal).

Para quem comete esse crime, o código penal prevê detenção de um a três anos para a mulher que aborta; reclusão de um a quatro anos para o médico ou outra pessoa que provoque aborto com o consentimento da gestante; e reclusão de três a 10 anos para quem provoque aborto sem o consentimento da gestante.

Caso o projeto seja aprovado pelos parlamentares, o aborto realizado após 22 semanas de gestação será punido com reclusão de seis a 20 anos, mesma pena prevista para homicídio simples.

Assim, uma mulher vítima de estupro, que realize o aborto após o período, pode ser condenada a uma pena maior que a do próprio abusador, já que o crime de estupro no Brasil tem pena máxima de 10 anos.

Repercussão
A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, criticou, nessa quinta-feira (13), o Projeto de Lei que equipara o aborto realizado após 22 semanas ao crime de homicídio.

Para a ministra, é necessário considerar a realidade brasileira nesse debate, em que 70% dos casos de violência sexual contra meninas acontecem dentro de casa.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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Isso, de acordo com ela, pode fazer com que as vítimas demorem a pedir ajuda, por não identificar a gravidez ou sentirem medo de acusar o estuprador pela proximidade familiar.

"A minha posição é que nós não podemos mexer no Código Penal que já existe. A legislação que estamos falando é de 1940, então não é possível que a gente queira mudar, alterar. E, principalmente, não é possível que nós possamos aceitar a criminalização de um recurso que as mulheres buscam e que no Brasil é legalizado", destacou Cida Gonçalves.

"Se nós estamos preocupados com aborto e não queremos que ultrapasse as 20 semanas, deveríamos ter vontade política para aumentar os serviços que atendem vítimas de violência no Brasil. Apenas 3.6% dos municípios brasileiros tem serviço de referência ao aborto previsto em lei", lembrou o médico obstetra Olímpio Moraes, em entrevista à Globo News.

"80% desses casos são meninas, violentadas por pessoas muito próximas, parentes. Nem sabe que está grávida, e muitas vezes são ameaçadas", afirmou Olímpio, que lembrou o caso de uma menina de 10 anos, do Espírito Santo, grávida do tio, que, em 2020, realizou o aborto em uma unidade de saúde do Recife.

À época, forças políticas intervieram na tentativa de barrar o procedimento, que foi realizado.

Retrocesso inconstitucional
Segundo o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), o PL 1.904/2024 é inconstitucional, viola o Estatuto da Criança e do Adolescente e contraria normas internacionais.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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“Representa um retrocesso aos direitos de crianças e adolescentes, aos direitos reprodutivos e à proteção das vítimas de violência sexual”, informa nota do Conanda.

A Defensoria Pública da União (DPU), por meio do Grupo de Trabalho Mulheres e do Observatório de Violência contra as Mulheres, também se manifestou sobre o assunto.

"A Defensoria destaca que a proposta, que criminaliza a prática do aborto no caso de gravidez resultante do crime de estupro, é um retrocesso aos direitos humanos das mulheres e à democracia. Além disso, ignora que 'a violência sexual contra mulheres e meninas no Brasil é um problema social crescente, que precisa ser enfrentado com seriedade, prioridade e amplo debate pelo Estado Brasileiro'", pontuou. 

Manifestação
Nessa quinta-feira (13), manifestantes em diversas cidades do País, como São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, foram às ruas contra o projeto de lei que equipara o aborto a homicídio.

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